Julia Holter, “Night Song”,
in https://www.youtube.com/watch?v=DBHohBg5xRQ
Se é dado o caso de o rosto ser uma máscara,
encerra-se, sob o rasto fingido, um segundo rosto? Podia dizer-se que não; que
se trata apenas de um refúgio necessário contra as intermitências do mundo, não
se sabendo, a um determinado momento, se o mundo está numa maré a favor ou se
cuidou de conspirar contra a pessoa. O segundo rosto é a cara imperativa que se
defende dos contratempos, das agulhas inesperadas, dos arbustos estéreis, dos
vultos transfigurados que assombram os sonhos, das facas que esvoaçam, dos mares
tumultuosos. Uma máscara, necessária contra as amaldiçoadas convulsões que
apanham a pessoa desprovida de armas de defesa.
E se a ordem dos fatores estiver
invertida? Se o segundo rosto for o rosto principal, o rosto não tomado pelo
fingimento, o rosto que descerra o autêntico eu? Porque não convém dar o flanco
e mostrar de mais a autenticidade do indivíduo. O rosto, o rosto que se vê, não
pode ser a montra das emoções que se soerguem à flor da pele. Esse rosto tem de
ser um artifício. Porque a pessoa desconfia que todos os demais rostos,
descontando os dos ingénuos, são rostos disfarçados. Não contemplam a
essencialidade do indivíduo. São rostos teatrais. Fingidos. Como fingida é a
imensa teia composta no tear das convivências. O rosto que se põe à mostra do
olhar outro é uma urdidura.
Lá atrás, bem escondido, acessível
depois de se raspar a teimosa camada de verniz que o encobre, o segundo rosto. A
personificação do eu tangível. Um rosto raro. Um rosto necessariamente
escondido. Sem ser falsário: na escala dos imperativos, e nos interstícios do
amplexo de fingimentos tecidos entre todos (com exceção dos ingénuos), não é reprovável
o segundo rosto escondido sob a dura camada que está à mostra – o rosto que se
vê; todavia, o rosto fingido.
A meio de um sono sobressaltado, uma
interrogação impertinente: não terá valimento maior ser ingénuo, decapar o
rosto primário, deixá-lo caiado com as curvas e poros de que o rosto é
autenticamente feito? Ou seja: transfigurar o segundo rosto, dando-lhe a cepa
do rosto primeiro e fazendo-o coincidir um com o outro. Talvez a ingenuidade não
seja mal pensada. Na complexidade da teia que se entretece nas convivências,
quase nunca somos o rosto que se dá a ver. A páginas tantas, é insegura a
fronteira entre o rosto autêntico, o primeiro rosto e o segundo rosto. É volátil
aquilo que somos – e apanhamos o comboio irrecusável das existenciais dúvidas.
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