Indignu, “Onde as Nuvens se
Cruzam”, in https://www.youtube.com/watch?v=xzJWIyr7KF8
Os corpos dos velhos, abraçados, movem-se
sob a música vagarosa. Demoram-se – os corpos, a música, a dança. Sem intempéries
por estorvo, sem que houvesse mundo lá fora; intemporais. Os velhos olham-se nos
olhos recíprocos. Metem-se nos olhos um do outro e perguntam quem são.
Dir-se-ia ser imperativo o vagar. Os corpos
cansados, as artroses que empalidecem a coreografia e a idade impedem que as
coisas sejam compostas como seriam antes de a velhice avançar e ficar sitiada
pelo tempo. Não se importam, os velhos. Os rostos estão tão próximos que seria
possível contarem as rugas um do outro, uma a uma. Não interessa. Continuam a
mover os corpos na coreografia compassada, no penhor dos corpos aceitáveis. Às vezes,
fecham os olhos e a música desce lânguida pelo corredor das memórias. De lá
resgatam o imenso lugar de que foram artífices, o amor singular. Não lhes
interessa se alguém proteste que o amor é sempre singular; os velhos só
respondem pelo deles.
Prosseguem a valsa descalços. Não são
os pés gastos que impedem a fruição do chão frio, como se fosse preciso
arrefecer a febre que ainda têm pela perseverança da vida. Ele sussurra: “ah! se nos vissem, diriam que somos loucos.”
Ela anui com um suave movimento da cabeça, para depois a repousar no ombro
largo do companheiro. Fica com a palavra “loucura” a adejar sobre o pensamento.
Foram tantas as loucuras, o sedimento largo do amor, que não sabia se era por
pudor que as não contava, ou se era por serem matéria deles exclusiva, a farta
seara de que foram artesãos.
Não interessava. A noite não tinha
horas. A música continuava, teimosamente, à espera do cansaço dos velhos dançarinos.
Eles não desistiam da valsa. Da vagarosa valsa. Mandaram parar o tempo, não
fosse esgotar-se a música, cansada pela resistência dos velhos. Quando deram
conta, a madrugada tinha sido reposta. As pernas não acusavam cansaço e os pés
não estavam frios como o chão da sala deserta. Os velhos estavam mais vivos do
que alguma vez souberam estar.
Não era a última valsa. Era a valsa sem
fim. A valsa que tornava o tempo imorredoiro e lhe retirava a caução de medida a
destempo.
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