King Krule, “Dum Surfer”,
in https://www.youtube.com/watch?v=K5-f1Bnltu8
Os plumitivos – os primeiros a
acordarem para a bombástica novidade – estavam boquiabertos, paralisados pela
devastadora notícia que chegou às mãos. S. Nicolau não era santo nenhum. Trazia
atrás de si um imenso rol de assédios sexuais. Seria, talvez, a última
personagem de quem se podia esperar que o nome fosse arrastado para a lama de
tamanho ultraje.
As denúncias começaram a chegar às
redações. Vinham de todos os lados. O Pai Natal não era seletivo na escolha das
vítimas. Não se podia acusar o homem de discriminação racial. Aliás, pela
dimensão da amostra (que crescia a cada hora que passava), também não
discriminava em razão do sexo ou da idade. Usando linguagem de caserna, “tudo o que vinha à rede era peixe”. Serviu
para acalmar o clamor popular contra os extravagantes que vitimizaram crianças,
pois havia histórias de aproximações menos dignas a meninos e meninas de tenra
idade. Ao menos, a obra poética de um emérito sociólogo coimbrão ficava vingada
– e, de uma assentada, fazia-se a justiça divina de pôr o emérito sociólogo
coimbrão em sentida solidariedade com o Pai Natal (o que exigia, como condição
prévia, que o emérito sociólogo coimbrão começasse a acreditar na personagem
inventada pela Coca Cola).
Imperou um módico de bom-senso nas
redações dos jornais, televisões e rádios. A autocensura não deixou vir ao
conhecimento do público os escabrosos enredos que davam conta da marialva,
patológica condição do Pai Natal. Até os mais sensacionalistas órgãos de
comunicação social aceitaram o pacto de silêncio. Não se podia destruir o Natal
– era o pregão de ordem que as grandes cúpulas (ou seja, sem receio de
escorregar para uma teoria da conspiração, os detentores do grande capital, a
quem mais aproveita o consumista Natal) enviaram para as redações. Mas o grande
mal já estava feito, irremediável. O Pai Natal estava impedido de ser Pai Natal.
Com o Pai Natal demitido de funções, como se executava o Natal?
Outro dilema tocou a superfície: como
se explicava a ausência de Natal às criancinhas? Os mais adultos, embebidos num
ceticismo metódico, não eram problema: assim como assim, não acreditavam no Pai
Natal – por maioria de razão, não acreditaram na notícia. Aliás, se quisessem acreditar
no enredo, não entendiam como podia ser possível um ancião tão atarefado ainda
ter tempo para espalhar o anti charme próprio dos camionistas e de nem sequer ser
criterioso na seleção dos assediados. Aliás, alguns destes céticos – dando-se a
coincidência de estarem nos interstícios entre a meia-idade e a terceira-idade
e de serem homens – passaram subitamente a acreditar no Pai Natal. Havia de se
descobrir o segredo do velho. (E a pastilha azul não seria: os seus réditos tal
não permitem, o Pai Natal é remediado.)
A grande dificuldade eram as criancinhas.
Era um duplo problema. Primeiro, era preciso encontrar explicação convincente
para o cancelamento do Natal – e preparar para o pranto geral. Segundo, essa
explicação exigia uma patranha: se havia explicação que não podia ser prestada
era a verdadeira, para não sitiar as criancinhas noutro trauma: como era possível
o anafado e simpático Pai Natal ser um tarado sexual?
(E depois era preciso explicar-lhes o
que é um tarado sexual. Correndo-se o risco suplementar de estar a formar um exército
de futuros tarados sexuais, a julgar pela acrítica atração que os petizes têm
pelo Pai Natal.)
Sem comentários:
Enviar um comentário