Mogwai, “Crossing the Road
Material”, in https://www.youtube.com/watch?v=uHN8PmyeryM
Havia um lugar na cidade que
homenageava os miseráveis. Porque há sempre miseráveis, gente assaltada pelo infortúnio,
daqueles que não sabem o que é a sorte (nem sequer a vulgata da “boa sorte”,
metonímia que ganhou foros de expressão reconhecida pelos maus-tratos cominados
ao idioma). E, em havendo miseráveis, a cidade tinha de o recordar a todo o
tempo. Porque se impõe o dever social de acolher os miseráveis no covil da
piedade. E porque não se sabe se a qualquer pessoa não cabe a vez da miséria
futura.
Os forasteiros, não sabendo da existência
de semelhante praça nos lugares de onde vinham, ficavam admirados com o
desassombro. Em muitos lugares, a indigência é escondida – por pudor, para não
tomar conta das consciências mal dormidas dos entontecidos com casos de miséria.
Aqui era diferente: a miséria fora apalavrada em praça. Os mendigos estavam
espalhados pela cidade. Uma visita noturna era desaconselhada, por ser
deprimente: sem-abrigo acotovelados nos lugares mais abrigados da cidade, protegidos
contra os rigores do inverno. E múltiplas carrinhas de assistencialismo na
oferta de uma refeição frugal e de um café quente para ajudar a enganar o frio
invernal que crescia às costas da noite.
Estranhamente, não havia mendigos na
praça dos miseráveis. Os habitantes da cidade fugiam da pergunta, quando os
forasteiros indagavam sobre a meticulosa ausência de indigentes da praça que os
recordava. Em contrapartida, entoavam com orgulho a parceria que a cidade
estabeleceu entre miseráveis e comiseração. Era quase um dever estatutário da
cidade, o de providenciar ajuda aos miseráveis. E se um forasteiro desfiava um
rol de perguntas incómodas (por exemplo: tanta generosidade não era o fermento
da profusão de miseráveis? A comiseração instituída não era apenas a libertação
da má consciência dos notáveis?), os habitantes da cidade recusavam, ofendidos,
oferecer resposta, pondo termo à conversa.
Eles também não confessavam que o rol
de miseráveis não terminava nos que estão à vista – os mendigos espalhando
ociosidade, passivamente à espera da generosidade que tinha cabimento no
programa estatutário da comiseração. Aquela cidade era povoada por gente
anomalamente tristonha. Era um viveiro de poetas conhecidos pelo registo melancólico,
com prolixas estrofes desembainhado catástrofes pessoais, mortificações
interiores, a irremediável inutilidade das suas existências, desamores
lancinantes, a confissão dos terríveis pecados em que lobrigam. Esses eram os
maiores fautores da praça dos miseráveis. Dos invisíveis e, contudo, mais
desapoderados miseráveis.
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