12.12.17

Praça dos miseráveis (há quem lhe chame praça da comiseração)


Mogwai, “Crossing the Road Material”, in https://www.youtube.com/watch?v=uHN8PmyeryM    
Havia um lugar na cidade que homenageava os miseráveis. Porque há sempre miseráveis, gente assaltada pelo infortúnio, daqueles que não sabem o que é a sorte (nem sequer a vulgata da “boa sorte”, metonímia que ganhou foros de expressão reconhecida pelos maus-tratos cominados ao idioma). E, em havendo miseráveis, a cidade tinha de o recordar a todo o tempo. Porque se impõe o dever social de acolher os miseráveis no covil da piedade. E porque não se sabe se a qualquer pessoa não cabe a vez da miséria futura.
Os forasteiros, não sabendo da existência de semelhante praça nos lugares de onde vinham, ficavam admirados com o desassombro. Em muitos lugares, a indigência é escondida – por pudor, para não tomar conta das consciências mal dormidas dos entontecidos com casos de miséria. Aqui era diferente: a miséria fora apalavrada em praça. Os mendigos estavam espalhados pela cidade. Uma visita noturna era desaconselhada, por ser deprimente: sem-abrigo acotovelados nos lugares mais abrigados da cidade, protegidos contra os rigores do inverno. E múltiplas carrinhas de assistencialismo na oferta de uma refeição frugal e de um café quente para ajudar a enganar o frio invernal que crescia às costas da noite.
Estranhamente, não havia mendigos na praça dos miseráveis. Os habitantes da cidade fugiam da pergunta, quando os forasteiros indagavam sobre a meticulosa ausência de indigentes da praça que os recordava. Em contrapartida, entoavam com orgulho a parceria que a cidade estabeleceu entre miseráveis e comiseração. Era quase um dever estatutário da cidade, o de providenciar ajuda aos miseráveis. E se um forasteiro desfiava um rol de perguntas incómodas (por exemplo: tanta generosidade não era o fermento da profusão de miseráveis? A comiseração instituída não era apenas a libertação da má consciência dos notáveis?), os habitantes da cidade recusavam, ofendidos, oferecer resposta, pondo termo à conversa.
Eles também não confessavam que o rol de miseráveis não terminava nos que estão à vista – os mendigos espalhando ociosidade, passivamente à espera da generosidade que tinha cabimento no programa estatutário da comiseração. Aquela cidade era povoada por gente anomalamente tristonha. Era um viveiro de poetas conhecidos pelo registo melancólico, com prolixas estrofes desembainhado catástrofes pessoais, mortificações interiores, a irremediável inutilidade das suas existências, desamores lancinantes, a confissão dos terríveis pecados em que lobrigam. Esses eram os maiores fautores da praça dos miseráveis. Dos invisíveis e, contudo, mais desapoderados miseráveis.

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