Ride, “Vapour Trail” (live on
KEXP), in https://www.youtube.com/watch?v=9bVS9j8NoZ0
Era velho, mas sonhava que não passara
de meninice. Era velho e sabia que naquela terra não havia natal ungido pela neve.
Mas sonhava que no natal as ruas estavam apinhadas de neve e era preciso usar pás
para cavar entre a neve um caminho para sair de casa. Era velho, tisnado pelas
rugas da experiência; já deixara de lado a contabilidade dos natais, porque não
tinha paciência para a contabilidade da idade. A sério: não sabia a idade, pelo
menos não a sabia na ponta da língua. (Um destes dias, em tendo ido à médica, ela
perguntou a idade. Teve de fazer cálculos a contar desde o ano do nascimento. No
dia seguinte, já se tinha esquecido outra vez.)
Ainda assim, celebrava o natal com igual
excitamento ao que tinha na infância. Mesmo sendo velho. Mesmo estando imerso
na mais profunda solidão – os mais próximos tinham morrido ou tinham emigrado
para distantes lugares. Não perdia a ilusão, contudo. Fazia a questão de
repetir a palavra “ilusão” as vezes que fossem precisas, como se fosse sublinhada
numa folha de papel onde tinha sido exaustivamente escrita. Se não ficasse extático
com o imaginário do natal, era mais difícil aguentar as dores lancinantes que
desde a solidão o corroíam.
Desde que ficara sozinho – e desde que recusara
longas viagens para a partilha da época: o que valia para si como valia para os
outros, a quem não queria impor o sacrifício de tão demorada demanda em sua
homenagem – nunca passou o natal sozinho. Todos os natais arranjava soluções
diferentes (sempre detestara a rotina e não era a velhice que o fazia
capitular). Um amigo da escola subitamente encontrado no meio da rua; um
mendigo, escolhido no critério sopesado da proximidade cultivada nos meses
anteriores; uma mulher que amou e tão depressa desamou depois do natal; um
albergue de descamisados onde era voluntário; um hotel, na companhia de uma
senhora da elite que conhecera depois de publicar anúncio no jornal da cidade a
solicitar companhia para a véspera de natal; um rapaz que fez passar por seu
neto adotivo, antes de o ganapo ter entrado na maldita adolescência.
O velho sabia que não havia pai natal,
nem renas oniricamente voadoras, nem a bondade ventilada passava da quadra – e desconfiava
que o bacalhau e as filhoses e os formigos e as rabanadas e o queijo da serra
eram faz-de-conta, como desconfiava que as luzes que ornamentavam as ruas eram uma
desnecessária mnemónica. Sabia que eram melífluas as cançonetas de natal. E sabia
– só ele sabia – que a fábula estava errada: o natal não era com renas, era com
veados.
(O que fazia toda a diferença no imaginário
natalício, segundo as suas robustas teorias.)
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