21.12.17

Se os amigos não emprestam dinheiro uns aos outros, também não devem atar as mãos uns aos outros (mas não, isto não é uma mudança de posição)

Nine Inch Nails, “The Fragile” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=oBKwtK1J30c    
Uma lição de psicologia barata: se temos amigos, é bom critério não pensarmos pedir dinheiro emprestado, ou emprestar-lhes dinheiro. É meio caminho andado para arruinar a amizade. Havendo amizade e metendo-se dinheiro pelo meio, é forte a probabilidade de os sentimentos serem derrotados pelo materialismo. Haverá quem abuse da amizade para trepar às costas dos amigos graças a empréstimos. E se houver dificuldades em restituir o dinheiro em dívida, a amizade será critério categórico para perdoar dívidas. Só que o mesmo critério é válido para o amigo que está do outro lado da trincheira: quem empresta quer ver a cor do dinheiro – o materialismo também se sobrepõe à amizade. Ou, glosando o adágio, “amigos, amigos, negócios à parte”.
Contudo, os amigos não praticam malfeitorias uns nos outros. Ou não o deviam fazer, a menos que a amizade seja uma intentona. A não ser que decaiam em tendências S&M (e elas sejam consensuais, colorindo a amizade), os amigos não atam as mãos uns aos outros. Sobretudo se estiverem numa posição desigual à partida no que às forças diz respeito. Cenário em que se apresta a ver em palco o amigo hercúleo a amordaçar o amigo franzino. E se à amizade o torniquete das regras se impõe (o que é bizarro, pois a amizade devia ser guiada por princípios espontâneos, não por regras reduzidas a escrito), as negociações que as antecedem devem ser pautadas pelo equilíbrio. Caso contrário, o amigo mais forte dita para a ata as suas condições e o amigo frágil aceita-as sem bulir. Uma amizade destas é uma amizade treslida. Uma amizade a caminho do precipício. Pois uma amizade não se sujeita a regras – e aqui adicione-se um ponto final.
Se os amigos se regem por regras, devem levar as consequências até ao fim. Se, em obediência às regras, o amigo frágil precisa de ajuda financeira, o amigo mais forte deve ser o primeiro a atendê-lo. Não se conceba uma relação em que a uma das partes (o amigo mais forte) só assiste a fatia agradável da amizade e ao amigo franzino restam os deveres. Uma amizade destas é uma amizade fracassada, ou a caminho de o ser. Ou não é legítima amizade.
Termos em que restam duas hipóteses: ou os amigos aceitam que a amizade não se subordina a regras escritas, ou a forjam no conciliábulo de regras absurdas. No primeiro caso, não se coloque a hipótese de os amigos emprestarem dinheiro uns aos outros, em homenagem à saúde da própria amizade. Na segunda hipótese, sejam tiradas consequências totais da formalização de regras: assim como assim, com uma amizade treslida, se for preciso ao amigo forte emprestar dinheiro ao amigo franzino, e se este for desleal ao ponto de ameaçar não pagar (ou pretender renegociar os termos da dívida), ao mundo não virá grande mal: à partida, esta era uma amizade frágil, ou uma outra coisa qualquer refugiada no eufemismo da amizade. Não haverá grande perda se a confiança se estilhaçar entre os dois “amigos” (assim, propositadamente grafado).
Aprendi outra lição, mais relevante do que a lição da psicologia barata: é preciso ter destreza na escolha das metáforas. O exercício estilístico exige que se saiba escolher os termos da comparação. Uma regra cardeal aplica-se ao exercício: só se pode comparar o que é comparável. O cientista social, alemão e socialista, que usou a metáfora pedida de empréstimo à psicologia social, foi desastrado. E inconsequente. No plano comportamental, as nações não se comparam com as pessoas. Justificar por que não deve a União Europeia transferir um camião de dinheiro para os países sobre endividados com base na lição da psicologia sobre os amigos que devem evitar emprestar dinheiro, é confundir a água com o vinho. E mostra a obstinação de quem se ensimesma no interesse nacional e despreza as responsabilidades europeias. Se tivesse vencimento, a metáfora desaguava numa incómoda interrogação: que amizade é esta onde só conta o egocentrismo de um dos amigos (ainda por cima, o mais forte)?
Já Ulrich Beck (um alemão desiludido) protestava contra a Europa alemã, descontente por a opção não ser Alemanha europeia. Foi preciso ter vindo a Berlim e ouvir alguns alemães (académicos, políticos e membros de think tanks, de esquerda e de direita) falarem sobre o assunto para perceber, em carne viva, como a teimosia oblitera a lógica.

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