A alma funda procura um rio. Arruma as mãos na terra negra que serve de caudal. Arruma as mãos, desarrumando a terra; o insulto maior – diz-se – é tirar o freio ao futuro sem saber inventariar o olhar persistente. Avançam os estorninhos, como se estivessem a perseguir a Primavera. O olhar desatento insurge-se contra as maleitas do mundo de que não é vítima predileta. Talvez a alma funda se apazigue se encontrar o rio. Ou talvez se ela não cobrar franquia ao basalto deixado em legado. Precisa de um húmus. Precisa de um verbo que a faça reapossar da vontade que se encontra colonizada pelos estigmas averbados nas panaceias da pertença. Sente-se a antítese de um paladino. Mas por que haveria de querer ser um paladino se a alma não tem causas? Ela vira-se do avesso, à procura de matéria. Inspeciona-se, com diligência. Encontra o basalto tatuado, o seu contraste avivado na pele que foi virada do avesso. Não possui nenhuma quimera. Limita-se a ser uma reverberação dos imoderados amplexos que o mundo limítrofe distingue. Se não houvesse estas marcas distintivas, a alma sentir-se-ia avulsa; ou órfã. Não tem nada a perder: ascende ao topo e golpeia o sol com a sua fronte ousada. O sol não verte lágrimas. A alma não sangra. Os despojos são uma simulação que faria sentido numa peça de teatro. Aqui cuida-se dos cuidados da alma que precisa de amparo. Mas a alma não pede amparo. Pressente-se que precisa dele. Por isso esconde o basalto tatuado. Não por pudor; por saber que se vissem o basalto tatuado adivinhavam que esta é uma alma fortaleza. Que alma aguenta o basalto tatuado sem verter uma lágrima? No cofre, um diadema reserva o sortilégio. Não é qualquer um que esconde o basalto tatuado.
30.4.21
Basalto tatuado na alma (short stories #319)
29.4.21
O dia em que deixou de haver boletim meteorológico (short stories #318)
O país tinha um suserano que era um tiranete com maus fígados. Um médico, que em tempos prestou serviço na casa presidencial, confidenciou que o suserano lhe confidenciou que tinha úlceras por causa da felicidade exsudada pelos súbditos. Era deste jaez, o soberano. Numa manhã que se seguiu a uma noite com mau recorte, ele interditou o boletim meteorológico. O país ficaria às escuras no que ao tempo diz respeito – e só acrescentou uma camada de trevas ao céu que tinha o país como mapa. O soberano decidiu que os súbditos não tinham de estar informados sobre o tempo; era uma distração. Se houvesse tempestades nas proximidades, o ministério da tutela, sob instrução de sua excelência, cuidaria de arvorar o alerta vermelho. Descontada esta extravagância meteorológica, os súbditos limitar-se-iam a ser zelosos operários e extremosos maridos e mulheres e filhos e filhas. Deviam saber o seu lugar na ordem cósmica, diligentemente desenhada nas equações do suserano, para altear o país na comparação com os outros países. O que nunca foi dito é que o soberano queria o tempo só para si porque era agricultor e floricultor nos tempos livres. Ou seja: grande parte do dia era passada na lavoura. O soberano-agricultor queria o tempo só para si para saber como conduzir as sementeiras, quando fazer a poda, quando colher os legumes e os frutos e as flores. Só para ser o melhor produtor no mercado da cidade. Sempre fora o sonho de uma vida inteira. Mais importante do que continuar a oprimir os cidadãos. Os cuidados da pátria, deixava-os para os ministros que se entretinham meticulosamente com a função e despachavam avulsamente com o soberano. Os ministros mais importantes – escusado seria dizê-lo – eram o da meteorologia e o da agricultura.
28.4.21
Nicotina nos dedos
- Por que tens os dedos tão amarelos, avô?
O avô, descentrado do mundo limítrofe, cantava trovas às moças de outrora. Avocava o passado de conquistador, na altura em que deixava um rasto de charme pelos bailes vespertinos. O homem era apreciado e não se fazia rogado. Dizem as más línguas (e as boas também) que perdeu a conta das donzelas que o deixaram de ser por sua causa.
Indiferente à neta, o avô fazia de conta que não era octogenário. “Não há nada como manter o espírito fresco”, dizia todos os dias para que os poros e as mais fundas entranhas o pudessem escutar. O corpo já não respondia como dantes. Custos do cansaço que toma conta do corpo. A máquina – “o corpo, os corpos, são máquinas, sempre máquinas, e respondem maquinalmente” – desgasta-se, vai ficando mais próxima da decadência. O avô sabia que se o processo decadente se contaminasse ao espírito, o corpo envelhecia mais depressa. Por isso, avivava a memória. Não havia um único dia sem avivar a memória, de lá trazendo os fragmentos que evocavam as proezas físicas.
- Não me respondes, avô? Diz-me por que tens os dedos tão amarelos? Estás doente do fígado?
O raio da neta não o largava do pé. Depois de entrar na universidade para cursar medicina tomou conta da sua saúde, como se fosse a sua médica de família. Ele sentia-se mais como uma cobaia à mercê da neta. Quem lhe mandou dizer que ela era a sua neta preferida? Mas isso foi quando a rapariga tinha cinco anos e ele só fora avô uma vez. Temia que os seus pergaminhos avoengos empalidecessem se começasse a ser brusco com a neta mais velha. De tanto insistir na causa dos dedos amarelecidos, enfim acedeu à demanda:
- O fígado recomenda-se, minha querida. O teu avô sempre teve uma vida regrada.
O velho disfarçou a origem do amarelo nos dedos ao invocar a vida regrada. Não fosse pelo tabaco que ainda consumia avidamente (contra o conselho dos médicos e da neta que se fazia passar por médica de família – e dele próprio, que já fizera, ao deitar, tantas juras que deixaria de fumar), os hábitos eram regrados.
- Se não é do fígado, o amarelecido dos dedos é do quê?
Sem se deter numa pequena-grande mentira (a mitomania era um mal necessário quando alguém invadia o perímetro de segurança do velho homem), atirou com maus modos:
- Fui apicultor muitos anos. Tive de mexer todos os dias no pólen das flores. Daí os dedos amarelos.
A neta, muito letrada (ou não cursasse medicina, que, é sabido, é uma coutada dos mais letrados), não foi de modas:
- Queres ver que as flores polinizadas pelas abelhas têm nicotina...
27.4.21
Queimar tempo
Não olhemos para os relógios – nem para as nuvens que dançam no céu tardio, ou para os seráficos oráculos que nos desapreciam com o desdém dos arrogantes. Não olhemos para o tempo enquanto cresce uma maré sem domínio. Porque o tempo é uma maré sem domínio e nós somos os seus servidores.
Não sejamos servis à selva em que se transformou o tempo que arroga uma servidão. Às promessas vindouras não oferecemos o rosto; damos a ossatura como aval da posteridade. Prosseguimos como se não houvesse tempo de permeio. A nossa intenção é queimar o tempo. Como fazem os que arrastam o tempo antes que sejam derrotados por causa do seu andamento. Esquecem-se dos danos colaterais. O tempo queimado agora é tempo por gastar depois. É como se não aprouvesse uma meticulosa medida de poupança, como se os recursos fossem inesgotáveis e não dependêssemos da poupança para guardarmos um módico que é caução do depois.
Mas o tempo que queimamos fica a arder nas nossas mãos. Subimos a escadaria alcantilada sem ser por profecia ou por juramento. Não damos conta das preces dos outros. Oxalá – dizemos, sabendo da sua impossibilidade – a intemporalidade tivesse as raízes bem fundas na carne de que somos feitos. Mas sabemos que não é assim. E, mesmo assim, partimos para a queima de tempo, como se a combustão fosse um alvará para o seu entesouramento.
Dos dias em diante não sabemos nada. E mesmo dos dias que emoldurados em memória guardamos uma furtiva centelha: questionamos se as imagens que acendem a memória (ou que são acesas pela memória – ninguém sabe bem) cumprem o exercício fidedigno da sua reprodução. Pode ser que sejamos atraiçoados pela memória. E nem do tempo pretérito guardamos uma medida precisa. Por isso, a queima de tempo: pressente-se num adiamento que resgata o tempo diluído numa memória contrafeita. Queima-se o tempo numa valsa de fingimentos.
Da queima do tempo se dirá ser uma indigência. Como se fôssemos ladrões de nós mesmos e os juízes que os sentam no banco dos réus.
26.4.21
Bandeira
Não se cumpre um destino. As pregas do riso coçam as costas só de saberem que um par de contratempos espreita entre as vírgulas do tempo. Mas as pessoas acreditam nos mitos. Acreditam que uma bandeira lhes confere resguardo contra as intempéries da vida.
“Em sexteto, em sexteto”, advertia, com voz tonitruante, o capataz da obra para ensinar aos transeuntes por onde passar enquanto a trovoada da obra emudecia o cantar da cidade. Alguém não seguiu o preceituado e o capataz saiu do seu posto para colocar o dissidente em sentido. Ele não se incomodou com os gestos extravagantes do capataz, que procurava substituir a voz gutural pelos gestos espalhafatosos. O homem que avançou sem ser em sexteto apontou para uma bandeira à lapela, onde estava escrito “surdo-mudo”. O capataz não se incomodou. Só sabia ler cirílico.
À entrada do metro, uma rapariga acabada de sair da adolescência tocava guitarra acústica e cantava as trovas que se encontram nos discos que popularizaram os trovadores dos anos setenta. Um iletrado militante de causas radicais aproximou-se da rapariga e pagou a lhaneza da musiqueta com uns pregões achincalhantes, os perdigotos a serem salivados para cima da rapariga amedrontada (“esses comunistas que cantas deviam ter ido para a Sibéria e de lá nunca haveriam de sair”). E puxou da bandeira à lapela, a bandeira que tanto o orgulhava, da pátria que perdeu o jogo da decadência.
A poetisa embarcou a medo (“é sempre com um irremediável desconforto que sinto que o chão sob os meus pés é feito de água”). A vernissage de apresentação do seu novo livro estava marcada para o Tejo. O comandante tinha instruções para estacionar a embarcação num ponto equidistante das duas margens, com a proa virada para Lisboa. Com visível perturbação – que tomou conta da voz da poetisa, trémula como não se lhe conhecia – ela agradeceu a cortesia da editora e a presença de gente tão amável. E confessou, apontando o braço na direção de Lisboa, “esta é a minha bandeira”.
No arsenal das bandeiras, havia-as de todas as cores, umas puídas outras que pareciam ter sido diligentemente polidas, umas que perderam serventia outras que teimavam em ser hodiernas. Alguém procurava por uma bandeira particular – “onde está a bandeira da lucidez, onde está? Alguém sabe dela?” O silêncio dos circunstantes foi a resposta cabal.
23.4.21
Desmistifiquemo-nos (short stories #317)
Não haja grande participação da grandeza interior, que os demais dispensam ufania tamanha. Mantenha-se o lugar comum: somos irrisórias parcelas que só contam nos formulários estatísticos como frios números sem nome. O sobrepovoamento do mundo retira autoridade à existência individual – e os gurus do moderno pensamento aproveitam para condenar o individualismo a um estado vegetativo, levando cada um ao despojamento de si e à entrega ao domínio dos grupos a que pertence. Desmistifiquemo-nos, que somos de uma imensa pequenez, procuradores de nada, armários diletantes que passeiam a sua vacuidade. Não têm serventia os cães de guarda, que não há tesouro para acautelar. Na paisagem onde somos, ninguém nos distingue. Subimos a palco e de nós só notam um espectro que se confunde com um vulto a soldo de uma serôdia intenção. Não chegamos a entrar na ficha técnica, amordaçados a um número que dissolve o nome num líquido sem paradeiro. Não contemos com a indulgência dos espelhos. Passamos por eles e não vemos nada; os espelhos são baços – ou os espelhos entram em serviços mínimos à nossa passagem. Desmistifiquemo-nos, em força, sem a custódia do medo. Não diremos qual é o caudal por onde deixamos vestígio. Esse é um rio que não vem no mapa. E, todavia, no incenso em que nos consumimos, a pele não acusa a vertigem da idade. Entesouramo-nos. Pelo menos assim julgamos. Que interessa que os olhos estejam cansados, ou que as lentes que sondam a pele estejam fora de prazo? Os mitos que são imagem de marca já só interessam a nós próprios. Como tal, deixaram de ter serventia. Quando nos desmistificarmos, ficamos só nós, a matéria decadente que acorda rejuvenescida pelo desprendimento das espadas que dantes esvoaçavam no ferimento das ilusões. Agora somos só nós, sem o estrénuo fautor das ilusões.
22.4.21
Cabeça a prémio
Ah! As cabeças gloriosas à espera de prémio. Para elas há caçadores: devem ser ainda mais cabeças do que as cabeças por eles caçados, pois é preciso ter lucidez para descobrir génios e ter um génio ainda maior.
A cabeça a prémio não está à espera de um coldre que se esvazia à sua passagem. É um naco de inteligência que podia repousar numa cama debruada a folhas de ouro. Respira a quimera que os demais mortais apenas encontram em sonhos remotos. Quando uma cabeça a prémio é descoberta, é a humanidade que avança.
(A menos que a cabeça a prémio faça jus ao sentido literal da expressão, quando as superiores capacidades são usadas em contravenção com o “bem comum”; nesse caso, está a prémio uma cabeça na linha de abate).
Mas podem uns abutres adejar sobre o espaço circundante, invejosos que o progresso seja tutelado pelas cabeças a prémio – dissidentes do progresso. Preferem cingir a conspiração às cabeças pensantes que caçam cabeças a prémio. Dizem que é melhor cortar a eito, cercear o mal pela raiz. Para estes abutres, o bem do grupo é o seu mal. Dissidentes da concórdia e do progresso, investem as forças contra as cabeças a prémio e, em primeira instância, contra os que são caçadores de cabeças a prémio. Se eles forem eliminados, não sobra vivalma para descobrir cabeças a prémio.
A cabeça a prémio sabe que não vai ser uma cabeça empalhada. Ele há cabeças a prémio que pertencem a párias que é preciso deter. A cabeça a prémio de que se fala está nos antípodas. É o fermento de um qualquer cometimento contra os contratempos que sobressaltam o grupo. A cabeça a prémio é a caução do avanço que rima com a marcha do tempo. Estando a prémio, deve ser devidamente recompensada. De outro modo, a cabeça sabe que não está a prémio e deixa o seu contributo em adiamento.
Está em falta demonstrar que os caçadores de cabeças a prémio são mais fulgurantes do que as cabeças a prémio. Por que não lhes chamam cabeças a prémio avant la lettre ainda está por explicar. Pois se eles têm o talento para deixar em legado um punhado de talentosos, não serão eles ainda mais talentosos do que os talentosos que descobrem?
21.4.21
Magma (short stories #316)
Era quando o comboio passava no Entroncamento: vinha à janela apreciar o emaranhado de linhas, como elas se desdobram em ramais que se enovelam num palimpsesto de ramais. Costumava dizer (mas só para eu ouvir): “chegámos ao delta do Entroncamento”. Aquela forma ampla de ramais lembrava-me o delta de um rio. Nunca fiz a pergunta lugar-comum (“é por isto que se fala dos fenómenos do Entroncamento?”), porque não misturava os assuntos e não tinha propensão para a matéria esotérica. Tinha a ideia que a povoação (soube, mais tarde, que ganhou a comenda de cidade) existia porque existiam comboios que ali passavam. Nunca me informei sobre o gigantismo dos ramais que enfeitavam a estação do Entroncamento. Ou por que motivo se chamou àquele povoado “Entroncamento”. Sabia, quando o comboio proclamava a saída da estação, que aqueles ramais entroncavam num par de linhas, fosse Norte ou Sul o rumo do comboio. Não saía da janela do comboio enquanto as desmultiplicações das linhas não eram validadas. À chegada da estação, parecia que um matemático tinha ordenado uma equação que fazia crescer os fatores numa ordem exponencial. À saída da estação, o emagrecimento dos ramais repunha a verdade: quase sempre, a viagem faz-se numa via dupla. E se uma via dupla encerra alguma complexidade (pense-se naquelas pessoas que mantêm uma vida dupla com o consentimento do trio), o desdobramento que se exponencia radica no magma mais profundo que habita em nós. Lá bem no fundo, onde uma alma pequena se agiganta, habita o magma em combustão oferecendo as múltiplas possibilidades de sermos – os alter ego, os cambiantes de personalidade, os estados de espírito, a volubilidade do ser, as estrias que pressagiam as rugas que são a devastação da experiência. As vidas são como os ramais da estação do Entroncamento. São vários entroncamentos. Ramificam-se, sucessivamente, até voltarem a repousar na modéstia da via dupla.
20.4.21
Não atravessou o fio da navalha e ficou sem saber o que é o avesso do dia
Uma palete cheia de carvão: assim era o tempo coevo, e ele que não deixava de ser coeso no acaso da bússola que escolhera. Os dias repetiam-se. Em câmara lenta, como se o percurso do tempo fosse uma longa reta que atravessava uma planície plana e sem vegetação. Sem que a monotonia fosse sequaz.
Não lhe pedissem afoiteza, nem gestos que suspeitassem uma fratura com o tempo estabelecido. Não lhe pedissem palavras destemidas, que ele estremecia só de pressentir os escombros do terramoto consequente. O medo era substantivo, verbo e adjetivo, ao mesmo tempo. Era modo de vida. Ou melhor: modo de letargia, o medo – o medo de ter medo e de ser esvaziado por dentro de um vórtice de água que não tinha fundo.
Se houvesse desafio a condizer, perdia-se na macieza dos preceitos, no deslumbramento que não passava de um fingimento. E, todavia, não estava cansado de ser quem era. Se o acusassem de ser conservador, não era acusação; era o melhor elogio que lhe podiam dirigir.
Todavia, manifestava insatisfação à primeira oportunidade. Os contornos do mundo e a sua identidade perante ele ficavam aquém de um ideal. Intimamente, tinha ambições. Formulava sonhos em páginas e páginas que depois eram rejeitadas para a lareira, perdendo-se em cinzas efémeras. Era como se lograsse apenas uma existência reprimida por dentro. Mas era o produto da vontade. Aprendera que não se contraria a vontade, nem quando uma vontade de sinal contrário formula outras tantas páginas que são o contrabando propositado das que tinham o seu cunho. Nele havia duas personagens, simetricamente desiguais.
Em muito novo se iniciou nos imperativos categóricos, sufocando as interrogações que ainda eram novas para lhes ser administrado o soro da anestesia. O eu triunfal, que se sobrepunha sobre o outro eu rival, sabia de todas as manhas que eram precisas para impedir que o outro eu o desafiasse. Não sabia de cor se não uns poucos vocábulos, um punhado de lugares que se repetiam sem exaustão, o leito gasto de um rio invadido pelo salitre do mar, o rosto que perdera identidade.
Não sabia que armas terçar se fosse raptado do lugar de conforto. Talvez perdesse a cintilação do avesso do dia. Mas ninguém podia garantir que no avesso do dia havia claridade em vez de um carvão apodrecido que tomara conta das cores todas.
19.4.21
Em vez de juros, poemas
Um dia, quando a manhã invadiu a tarde e tu olhavas fixamente o meu rosto à procura de um leve sorriso, eta capaz de jurar que o vento de Leste desarrumava os verbos. Era como se as palavras se tivessem sublevado e as pessoas tropeçavam no racionamento das ideias. Como se, de repente, fôssemos matéria vazia por dentro, à espera de uma pulsão criativa.
Não se preparassem as juras acusadas pela vontade extravagante. Alguém confundiu as juras com juros (provavelmente, um negociador da bolsa de valores). Antes que a desordem se fizesse uma febril matéria ascensional, uns rostos anónimos, propositadamente desfigurados para as imagens, procederam à descontaminação. Que ficasse claro - reiteram os homens em fato-macaco – é de juras que se fala.
Mesmo assim, houve quem protestasse. Não tomaram partido dos corretores da bolsa de valores; participaram a sua dissidência contra o imperativo categórico das juras. Houve quem assinasse declaração de voto em voz tonitruante: “entre juras e juros, alguém que se atire da ponte para não contar a melancolia.”
Ao anoitecer, diríamos que o dilema estava em vias de resolução. O dia foi passado por uma contumaz dor de cabeça, mas valeu a pena. Os corredores da perplexidade foram esvaziados. As tintas que se jogavam ora a favor das juras irá a favor dos juros secaram e, cristalizadas, já só serviam como curiosidades arqueológicas. A anestesia dos sentidos era descabida. Se se mantivesse, um ultraje ao povoado onde existiam as vontades que não se deixavam hipotecar por disfarces.
O dilema estava em vias de resolução. As juras tinham deposto os juros. Era um passo em frente para entronizar os sentidos sem dar caução à materialidade das coisas. Só faltava a última estocada. Era preciso despojar as juras, para devolver às pessoas a liberdade que fora colonizada pelo fantasma das juras – essa indelével marca registada que dissolve o tempo presente à tirania do futuro. O dilema desfez-se na posse na poesia.
16.4.21
O montanhês que não sabia o que era um corpo salgado (short stories #315)
Do refúgio na montanha, o montanhês cumpria o sonho misantropo. Havia dias a fio que não via centelha de gente. Perguntavam-lhe, os visitantes infrequentes, se não tinha medo da solidão; se não o amedrontava o exílio das pessoas. O montanhês respondia com silêncio e um rosto impassível. Era a sua forma de desviar a conversa. Os ocasionais interlocutores sabiam que repetir a pergunta não tinha serventia. Um dia, uma jovem curiosa pelo ascetismo do montanhês perguntou-lhe o que gostaria que ela trouxesse da civilização se o pedido fosse feito. O montanhês parou para pensar e repetiu o silêncio sibilino que era usual quando os curiosos da metrópole paravam no seu abrigo para fazer perguntas. Desta vez, o rosto não ficou imperturbável. Era o rosto que personificava o pensamento cavado nas rochas indúcteis das serranias limítrofes. Na sua voz porosa, o montanhês retorquiu: “queria saber como é um corpo salgado.” A barba cerdosa, invadida pelo clima rígido das cumeadas, nunca ficara à mercê da maresia. Aquele lugar era longe de mais para que chegassem vestígios de maresia. A rapariga ficou atónita, sem reação. O seu silêncio sobrepôs-se ao silêncio estrutural do montanhês. Já não sabia se a pergunta fora um exercício de retórica, ou se o montanhês estava à espera que ela desse cumprimento à resposta – como se a resposta fosse entendida como uma encomenda. E não sabia como ler a resposta do montanhês: cederia espaço ao sentido literal, ou era apenas uma metáfora? O montanhês só queria saber como é o sal que é feito de mar. Pois do sal useiro, feito de salicórnia, abundante nas altas montanhas, sabia ele. A ascese a que se remetera, como resposta à pulsão misantropa, não permitia a venalidade dos prazeres carnais.
15.4.21
O burguês sem bigode (short stories #314)
Fingindo que estava convencido das empreitadas, o burguês fugiu de mansinho pela porta do cavalo. Não se esperasse dele sentido de responsabilidade (“responsabilidade social”, como está na moda). Assim acontece com todos os burgueses: penhores de um egoísmo soez, levam a peito a divisa “cada um por si”. Ele disfarçava a sua condição burguesa. Por aqueles dias, era voz corrente que os varões que fizessem gala da sua burguesa condição ostentavam bigode. Por falta de bigode, o burguês não era tido como burguês, muito embora os maneirismos, se fossem olhados com atenção, o denunciassem como tal. Quando alguém descobriu, acusou-o de ser um espião a soldo de capitalistas desaforidos que desconfiam dos sindicatos e conspiram contra a organização do operariado. O burguês, acossado pela brigada que jogava ao gato e ao rato com a espionagem burguesa, jurava pelo que lhe era mais valioso que não era o caso. Apertaram a jugular com o bico afiado de uma navalha para que revelasse o que era mais valioso. Só quando uma gota de sangue irrompeu uns milímetros ao lado da jugular (o carcereiro sabia da poda), o burguês sem bigode confessou: “é a menina Odete, que trabalha na fábrica das conservas, que me traz embeiçado.” Os operários sossegaram. O burguês não queria minar por dentro a sua organização. “Eu nem percebo nada de política, acreditem. E não tenho culpa de ter o berço que tenho”, acrescentou em sua defesa. Chamaram a menina Odete, que chegou aos aposentos onde o burguês sem bigode estava a ser interrogado nos mesmos preparos em que saiu da fábrica: a tresandar a peixe processado. E nem assim o burguês sem bigode esboçou um esgar de desprazer. Os operários ficaram convencidos. Só não sabiam que o burguês não tinha bigode porque ficara sem olfato a meio da adolescência.
14.4.21
Deste chão que não deu uvas (short stories #313)
Deste chão que não deu uvas, uma aurora boreal. Das suas pedras que se remexem com a ajuda do vento infame, a esteira onde se reinventam os rostos. Deste chão, o negrume que desmotiva e, contudo, as páginas são levantadas contra as intempéries do entardecer. Deste chão garabulhento, paredes-meias com as alcáçovas do medo, o estirador dos queixumes. Deste ao chão o teu nome proscrito. Deste-lhe uma página proibida no atlas da memória. Deste a vurmosa sela que não fabrica mentiras. Deste chão atirado ao chão, levantam-se os vultos sencientes que devolvem claridade ao dia timorato. Deste chão, sem derruir a redenção, insurge-se o comodato das almas permeáveis. Tão permeáveis quanto a matéria couraçada que dá corpo ao chão. Deste chão que não deu uvas avivou-se o luar na contrafação da luz caiada. Deste chão não foram uvas que vieram ao regaço: foi o amanhecer da fala em cachos sobrepostos, as sílabas alinhadas num socalco de fino recorte. Este foi o chão que nunca deu uvas, o chão de que não se esperam vindimas. O chão que vindima as aleivosias emolduradas em bocas dolosas, devolvendo-as aos despojos. Deste de ti ao chão na probabilidade de ele se embeber em tua fertilidade. Soubeste que foi empreitada em vão. E nem assim esmoreceste. Pois soubeste, de um chão de basalto que não deu uvas nem outro fruto qualquer, que não era de esperar o ato heurístico. Não se esperava que lençóis freáticos amparassem o chão; mas a água não conseguia abrir a escotilha do chão blindado – não conseguia se não ser água freática. Contudo, não vieste embora no vilipêndio da angústia. O chão pode não dar uvas, mas habilitou a geografia com paisagens hostis e belas. Não é todos os dias que um paradoxo medra em síntese tão rendosa.
13.4.21
Os corpos que dançam no Verão (short stories #312)
Não se reveem nas paredes encardidas do cais, enquanto o sol lembra que o Verão se desacerta pelos relógios da maresia. Os corpos, despojados, atiram-se contra a anomia dos sentidos. São fiéis depositários do desejo, açambarcados pela temperatura escaldante dos dias mais exigentes de Verão. Até à noite as peles suadas não param. Os verbos ajardinados fundem-se na trémula imagem que distorce o horizonte. Em vez de roupas, corpos à mostra – ou partes significativas de corpos, à mostra. Percebe-se que a igreja seja contra o Verão: as pessoas, emancipadas da tutela dos espíritos, não suam mais do que devem suar. Nota-se uma certa italianização dos costumes. Frívolos, dirão – mas em rima clara com a temporada estival. Percebe-se que as árvores voltem a vicejar na Primavera: autorizam as sombras que evitam males maiores aos corpos tisnados. E os corpos, inebriados pelo culto geodésico do Verão, dançam. Meneiam-se, na extravagância do calor a despropósito. Insinuam-se, na volúpia da pele que é amostra e desata o desejo. Dançam, enquanto a noite não for destronada pela manhã. Desafiando os contratempos que aprisionam as pessoas, os corpos eximem-se às quatro paredes e procuram a perenidade do céu a descoberto. Não há murmúrios ao relento – o Verão não se desperdiça. Esses corpos traduzem as almas dantes mitigadas. As árvores centenárias já se habituaram aos corpos aliviados de vestuário. As árvores deixaram a igreja para a frente no campeonato do conservadorismo. Alguém chama a luz farta para os poros falarem por si. As palavras, dispensáveis. Em cascata, encavalitados uns nos outros como se fosse uma orgia autorizada pelos costumes, os corpos que dançam no Verão aformoseiam o palco. Não se esperem se não acasos, sílabas fortuitas, bocas saciadas pelo álcool, bocas saciadas. Não se espere que o Verão seja menos tortuoso do que o Inverno.
12.4.21
Danos colaterais (short stories #311)
O trote do cavalo vem do rumorejo do vulcão. Antes da tarde, com medo que depois seja tarde, a cerimónia não espera por chamamento. É a levedura dos sinónimos que denuncia os apócrifos que se penhoram sem causa aparente. Há quem proteste que as ditaduras medram por muito menos. Acusam-nos: são uns exagerados. No sentido dos ponteiros do relógio, desmata-se a fúria que nasceu órfã. Devia continuar ausente, se nasceu órfã. E, todavia, sente-se o incriminar das veias como lugares onde os vultos ciciam palavras suspeitas. Os braços dormentes não deixam grande margem de ação. É o que os infelizardos, que desconfiam das conspirações, chamam “o lugar do morto”. Tudo passa ao lado, ao arrepio da vontade das vontades que se orquestram. Oxalá os amanhãs viessem autografados nas varandas belas que se debruçam sobre o mar. Haveria sempre um dedo a apontar o caminho preciso. Uma palavra a destronar o silêncio compungido. Almas reatadas nos destroços sem paradeiro. Avisam-nos: que a latitude dos atos seja sopesada para não cairmos na vulgata do arrependimento. Ou, o que é pior, para não deixarmos vítimas inocentes nos despojos dos nossos atos. Por isso, aprendemos com os vulcões uma dança paradoxal onde levitam os paradoxos. Em vez de danos colaterais, uma compensação que remenda a posição dos que, de outro modo, seriam vítimas. Uma lógica sem precedentes: a disposição das peças no tabuleiro exige que se antecipem as jogadas que se seguem. Ao estimar a rosa-dos-ventos onde se congeminam os perdedores e os ganhadores, os penhores da vontade estatuem as compensações que previnem os danos dos perdedores. Aprende-se a alargar o território onde se jogam as intenções e os seus efeitos imprevistos. Aqui, não há danos colaterais. Só compensações colaterais. Ninguém perde. Ninguém fica órfão nas pendências que persistirem.
9.4.21
O hespanhol fingido (short stories #310)
Olé! Era assim que cumprimentava as pessoas. Mantinha o sotaque musicado, identificativo dos andaluzes. Gostava de tourada. Dizia que gostava de tourada, mas fechava os olhos de cada vez que o toureiro, em sua bravura fingida, desferia a estocada no touro indefeso. Pimentos de Padrón, chipirones, horchata de Valência, paella, pulpo a la feria, tortilha, parrillada e batatas bravas, sangria e chuletón de carne rubia maturada eram presenças frequentes na ementa. Odiava catalães (só os que insistissem na independência da Catalunha). Fazia questão em almoçar às três da tarde e em jantar perto das onze da noite, o que muitas vezes o colocava em tardia posição quando queria amesendar num restaurante. Vibrava com o Real Madrid e tinha camisolas oficiais que envergava em dia de jogo. Gostava de citar Camilo José Cela, Javier Marias e o inevitável Cervantes (os clássicos ficam sempre bem na galeria dos orgulhos próprios). Se viesse a casar e tivesse filhos, ela seria Conchita e ele Manolo. Era monárquico e tinha uma devoção quase religiosa pela casa real dos Bourbon. No quarto, sobre a cabeceira da cama, uma bandeira espanhola servia de mnemónica. Gostava de ter nascido em Sevilha, mas nasceu no Barreiro. A primeira vez que foi a Espanha tinha vinte e três anos, depois concluída a licenciatura em Estudos Hispânicos. Na família, ninguém tinha antepassados espanhóis. Ninguém sabia explicar por que se fazia passar por um espanhol fingido. Por isso, chamavam-lhe o hespanhol e acentuavam o “h”, como os ingleses fazem quando pronunciam (por exemplo) “her”. Abespinhava-se quando perguntavam pela portugalidade que devia ser a sua identidade: “uma pessoa é o que se sente, não é as algemas que lhe põem no lugar da nascença”. Se lhe pedissem, era capaz de invocar a veia poética para escrever um poema para o hino de Espanha.
8.4.21
Jogar à defesa (o antónimo de maresia)
Não se diga da avença que não é limitada. As encomendas não pertencem ao espaduado destino, que ninguém pode garantir o dia seguinte.
Os precatados desalinhavam os verbos contra a ambição. Consideram que ela não tem medida. Pode ser um caudal que transborda e as terras alagadiças perdem fertilidade. Discutem-se as hipóteses. Uns querem barragens. Outros protestam: “a natureza tem de seguir o seu curso” – a mão do homem não deve fabricar os seus deslimites. São mais numerosos os que querem jogar à defesa. Escudam-se nos preceitos da diplomacia. De que serve a ambição dos tresloucados, se amanhã pode não haver chão para os seus pés? De que serve o ciciar dos loucos, se não é deles o palco do mundo?
Os que estão em maioria exigem travões a fundo. Não serão eles a dar o primeiro passo. Ficam à espera que a espera se consuma. Preferem reagir e deixar a ação para os outros. Ficam à espera: em vez das vozes escanifradas das mulheres da mesa do lado, os profetas da precaução desfazem-se em retórica que disfarça o medo. Ninguém sabe dizer se a cautela se confunde com o medo.
O dia rarefeito não os intimida. Não precisam de adiamentos para esperarem pela mediania do tempo. Não se ensinam, as decisões; decidem-se. O diligente procurador da maresia escusa de os procurar. Eles não querem saber dos odores que os deixem extasiados. Receiam que seja uma anestesia dos sentidos, para depois ficarem expostos aos algozes que saírem na penumbra. Racionalizam – “racionalizam”, que verbo tão frio e destituído de magma.
Se lhes dissessem que amanhã já não havia amanhã, talvez soubessem ser párias do que são e atiravam-se literalmente de cabeça, nem que fosse o abismo o que os esperasse depois. Mas continuam a jogar à defesa enquanto souberem que o dia seguinte terá lugar em devido tempo.
Jogam à defesa e esquecem-se da maresia. Não deixam vítimas atrás de si. Preferem ser eles as suas próprias vítimas.
7.4.21
O relógio das andorinhas
O lugar predileto das andorinhas era o relógio da igreja. Sentavam-se nos ponteiros do relógio e ficavam, longas temporadas, estorvando a marcha dos ponteiros. Durante essas temporadas, o relógio ficava atrasado. O tempo, como que mentindo entre parêntesis, não contava.
E assim foi até que, uns tempos depois, os habitantes da aldeia repararam nos atrasos sistemáticos do relógio. Muitos deles estavam acostumados ao batimento sincopado do sino que funcionava como astrolábio perante a medida do tempo. Pensaram que o relógio estava avariado.
O cura foi avisado – era dele a tutela do relógio que ditava a hora oficial da aldeia. Quando os operários andaram de volta do relógio, as andorinhas anteciparam a migração que por sua vez era o presságio do Outono. O relógio deixou de contrabandear o tempo e todos ficaram sossegados que ele estivesse outra vez à altura do tempo. Os operários ficaram sem diagnóstico para o mal funcionar do relógio.
Até que a Primavera seguinte aterrou no calendário, com o regresso das andorinhas. Depressa se lembraram do conforto dos ponteiros do relógio da igreja. O relógio voltou aos padecimentos. A sua mecânica não era capaz de derrotar o peso das andorinhas que se coreografavam em cima dos ponteiros. Os aldeões foram mais céleres na observação da avaria. Mas não estabeleciam causalidade entre as andorinhas altaneiras e a enfermidade do relógio. Até que alguém, mais metódico na observação, se interrogou se o descompasso do relógio não era culpa das andorinhas.
Não se falava de outro assunto. A maioria dos aldeões queria banir as andorinhas do relógio da igreja. Alguns dissidentes protestaram: não devíamos estar à mercê da ditadura do tempo – e não devemos interferir no curso da natureza. As andorinhas sabiam, melhor do que os aldeões, que a prisão do tempo era a maior doença que se abatera por aquele lugar (e pela humanidade). Suspendendo a medida do tempo, devolviam aos aldeões tempo por gastar. Era como se a aldeia fosse entronizada como um paraíso na terra: “o único lugar onde o tempo não conta”, era o mote para atrair turistas. Até que o Outono viesse repor o veio central do tempo, entristecendo os aldeões que não podiam aprisionar as andorinhas.
No meio da efervescência com a descoberta (só naquele lugar o tempo era domesticado à mercê da vontade dos homens – que se tinham em conta que ia além da sua medida), um menino disse: “agora percebo por que os dias no Verão são mais longos.”
Eram as andorinhas que, demorando o tempo, abriam a janela para os dias mais longos.
6.4.21
O homem que não queria governar o mundo
No país mais poderoso, o homem escolhido para a liderança acordou e decidiu que não queria governar. Aconteceu no dia a seguir à tomada de posse.
Por que deixou de querer governar o mundo, este homem? Teve um sonho com uns gramas de epifania. Um ror de corsários embuçados desfilava pelo quarto, cercando a cama, ameaçando colonizar todos os sonhos com imagens terríficas, com todo o sangue vertido em guerras como se fosse o rio sobranceiro ao palácio e uma sucessão de cadáveres pontuando as colinas em redor. Todos os dias estes pesadelos em consistório, enquanto o homem não renunciasse à governação do mundo. Porque eles, fantasmas bondosos, sussurravam em contínuo que o mundo não precisava de ser governado pelo mais poderoso.
Como podia reverter a jura que fizera no dia anterior, quando, em declaração solene, jurara governar para bem da pátria e, por consequência, do mundo? Reuniu-se com os conselheiros. Estes, atónitos e desorientados (assim como assim, iam perder a sinecura...), aconselharam o homem a desistir da intenção. Um deles chegou a invocar o argumento mais forte: é uma traição a quem o elegeu, tem de recuar na intenção. O homem não ficou convencido pela artilharia retórica. Não queria ser julgado por traição à pátria. Mas se, em última instância, tivesse de ser, não era homem para alijar responsabilidades.
O que acontecerá ao mundo que não vai ser governado por este homem? Vai continuar a ser governado por outro, seu substituto, outro todo-poderoso. A menos que qualquer substituto que tome posse seja assaltado pelos mesmos demónios em seus sonhos e se atemorize com a ameaça devastadora inscrita nos pesadelos ajuramentados. Até que um deles revele o segredo à pátria, e ao mundo, e os vassalos compreendam que o mundo dispensa a tutela do mais poderoso.
Até lá, está tudo em espera. O homem que já não foi a tempo de governar o mundo partiu para o exílio, o seu nome arrastado pela lama pelos vassalos (a vingança dos vassalos – dos que o elegeram e dos outros). Conseguiu, aos menos, que o sono voltasse a ser um lugar sereno para devolver as forças do dia.
5.4.21
O menino que ficava em frente do mar a contar ondas
O menino não tinha horas. O mar estava sempre à sua espera. A desenhar ondas sucessivas que enfeitiçavam o menino. Ele contava as ondas do mar. No inventário das ondas, ele inventou um vocabulário que narrava as ondas que chegavam aos seus olhos. De cabeça, sem mnésicas nem um compêndio que fosse da autoria de outros. Contava as ondas e registava mentalmente a contabilidade. No dia seguinte, o menino estava pacientemente à espera das ondas.
O menino não tinha reservas mentais em relação à terra. Mas virava-lhe as costas. O seu habitat era o mar que vinha ao encontro do olhar. Era como se tivesse identidade com as criaturas que habitam as funduras escondidas do mar. Era como se partilhasse com os náufragos as lágrimas que se esbatiam no seu rosto em forma de gotas trazidas pelo vento na sobra das ondas despedaçadas contra os penedos.
O menino já se sentia o procurador do mar. Sem ser o lugar feérico onde sobressaem os gurus da ecologia, que se servem do mar como instrumento de uma causa. O menino não sabia nada sobre política e outras coisas mundanas. Ele preferia apurar o sentimento do mar. Que era variável. Havia as marés, os diferentes estados de tempo, os ventos, a diabrura do dia que casava com os ventos de norte que despenteavam o mar e a serenidade da noite que silenciava as suas ondas. Tudo isto era anotado mentalmente pelo menino. Até que tivesse espaço para um livro com ilustrações vivas que fossem a fala do menino.
O menino só não conseguiu anotar mentalmente o número de dias consecutivos em que foi para a orla do mar contar as ondas por ele faladas. Foram muitos dias seguidos de conversa entre o mar e o menino. Um certo dia, o lugar escarpado não teve a visita do menino. O mar sublevou-se e, contam os jornais, foi a pior tempestade que aquele lugar guardou em memória. Dizem que o menino adoeceu e, desde o seu leito terminal, não deixou de contar as ondas do mar. Em telepatia com o mar, o menino teve o seu estertor.
Na sua lápide, alguém mandou esculpir um epitáfio: “aqui jaz o menino que contava as ondas do mar. Hoje pertence ao mar.” Nos registos do cemitério não consta o nome de quem mandou gravar o epitáfio. Os locais desconfiam que foi o mar.
2.4.21
Legítima defesa (short stories #309)
Desembestado o arsenal, o corpo fica à míngua de proteção. Foge, para onde seja possível. Não quer ser mártir das munições algozes. O corpo pode antecipar o movimento beligerante. Mete os serviços secretos ao serviço para perquirir se o arsenal está a ser alindado e se é para a parada anual ou para ser exercitado. Instrui os serviços secretos para serem vorazes na obtenção de informação. Os meios que forem precisos (corrupção, grande ou pequena, fica ao critério dos agentes). Recolhida a informação dos serviços secretos, apuram-se as probabilidades. Os melhores analistas são sondados. São pedidos relatórios fundamentados. Com urgência. Os resultados apontam para manobras antecipatórias de uma agressão. Os relatórios são unânimes. Só divergem quanto à data previsível da agressão. Antes que ela tenha lugar, que se ponha em marcha a retaliação. Uma retaliação a destempo, pois a retaliação acontece como resposta à beligerância dos outros. Invoque-se a legítima defesa. Invoquem-se as movimentações dos serviços secretos, que souberam, de fonte segura, que o ato de beligerância estava por dias. Daí a legítima defesa: antes de o corpo ser atacado, atacou quem o queria atacar. A legítima defesa pressentiu o ato de beligerância e atacou o beligerante antes que ele pudesse sê-lo. O arsenal (ou partes dele) foi consumido no boicote dos agentes bem treinados. Lançar mão da legítima defesa não previne beligerância futura. Por mais diligentes que os serviços secretos tenham sido, não podem ter a certeza que descobriram todo o arsenal que pode perturbar a serenidade do corpo. Confirmando-se as suspeitas sobre as limitações inspetivas dos serviços secretos, o corpo não pode evitar a retaliação contra a legítima defesa. Ninguém pode antecipar onde vai desaguar a espiral de arsenais atirados sobre o outro. Estes pleitos de vizinhança que se terçam com armas não costumam ter final feliz.
1.4.21
Cair do cavalo e aproveitar o chão (short stories #308)
Não é o arreio que te mantém no comando do cavalo. Em defesa da tua destreza, és reconhecido como exímio cavaleiro. Andas pelos campos em demanda contínua, e falas amiúde com o rocinante. Às vezes, o chão oferece ressaltos e um sobressalto assusta o rocinante. Ajustas o freio para o animal se aquietar. Ele sente o teu lampejo e sossega. E segues, imperturbável, enquanto a tarde desfila atrás das mosqueadas árvores já embebidas na primavera. Sabes que não estás a salvo de um contratempo e nem a destreza reduz a sua probabilidade. Não há cavaleiro que nunca tenha caído do cavalo. Tu já tiveste a tua conta. “Graças a Deus” (dizes, enquanto te persignas e diriges o olhar ao céu) “nunca tive das quedas a visita ao hospital como derivado.” (naquele linguajar que te é próprio, uma fusão de discurso coloquial e gongórico com atropelos à gramática). Sabes que cair do cavalo não te deixa apeado. Pois o rocinante não prossegue sem te sentir sobre a sela. Oxalá os pueris aprendessem que as contrariedades não os eliminam do jogo do mundo. O chão pode doer. Mas tem as suas propriedades medicinais. Apendemos com o chão para onde os ossos são atirados. Aprendemos a cair (e este devia ser o começo de conversa): se não, os ossos ficam à mercê de fraturas. Esse chão é um santuário de oportunidades. Dizem os antigos que de cada vez que se cai do cavalo é de maneira diferente. E o chão nunca é igual. Ainda que uma coincidência determine a queda do cavalo num lugar onde já se tinha caído, a queda é diferente. Mesmo que seja o mesmo chão, a maneira como o corpo é arrojado ao chão é diferente. Até com isso podiam os pueris aprender.