A Bielorrússia comete pirataria aérea, ao desviar um avião que transportava um opositor ao regime de Lukashenko. No dia seguinte (24 de maio de 2021), Rui Tavares empossa-se historiador do futuro:
“Mas Lukashenko pode dormir descansado. Da reunião do Conselho Europeu pode até nem sair um comunicado conjunto (...) porque as reuniões do Conselho têm infiltrado um cavalo de Tróia que é mais aliado de Putin, Lukashenko e qualquer ditador do que da própria UE de que faz parte. (...) [É] Viktor Orbán da Hungria que, se não puder vetar, diluirá em muito a reação da UE ao que se passou ontem com o voo Atenas-Vilnius”.
O futuro, contudo, desmentiu Rui Tavares. No mesmo dia, o Conselho Europeu aprovou por unanimidade a condenação da Bielorrússia e sanções que são consideradas duras no contexto da diplomacia da União que continua a enfermar de nanismo. Orbán, o tal que é aliado de Lukashenko, não se opôs. Rui Tavares esqueceu-se da profecia. Nas duas crónicas que publicou na mesma semana, nem uma palavra sobre o seu pressentimento que não passou de um logro.
Admita-se que Tavares tinha motivos para desconfiar que Orbán se opusesse à condenação da Bielorrússia. Na semana anterior, tinha sido o primeiro-ministro húngaro a impedir a unanimidade na condenação de Israel em mais um episódio da interminável guerra entre Israel e a Palestina. O problema dos oráculos é que devem ser aferidos pelas circunstâncias e os casos que a eles se submetem. Pois cada caso é um caso. E como convém encostar os que na União Europeia transgridem parte dos seus valores axiais (os que se autointitulam da democracia iliberal, um autêntico oximoro), não só se descai para adivinhações incompatíveis com um historiador, como se incorre numa confusão de personagens e de barricadas. Se a Hungria do Fidesz e a Polónia do PiS são os arautos da “democracia iliberal” e da proclamada, pelo líder da direita radical lusitana, “nova direita” (eufemismo para extrema-direita), como entender que estas personagens sejam aliadas de Lukashenko se a plataforma de onde surgiu o portal de oposição ao regime bielorrusso é alimentada a partir da Polónia? Os pontos desta trama não têm ligação inteligível. O que seria suficiente para prevenir uma profecia precipitada.
Rui Tavares parece lidar mal com a espessura do tempo e com as suas várias dimensões, o que é estranho para um historiador conceituado. Duas crónicas depois (28 de maio), analisou o conclave das direitas promovido pelo MEL. O diagnóstico foi contundente: a variedade de direitas nacionais está limitada ao saudosismo, ao neo-saudosismo e ao ultra-saudosismo (respetivamente: PSD, IL e Chega; o CDS está em vias de extinção, já o sabemos). Quem seja de direita em Portugal é como um toxicodependente agarrado ao passado. Não sei se foi por acaso que a crónica foi escrita a 28 de maio.
E eu, que sou de direita e que abjuro o conservadorismo (porque estou empenhado no presente e sei que vivo no futuro), fico perplexo com o reducionismo de um intelectual tão brilhante como Rui Tavares. A honestidade intelectual (ou, pelo menos, a humildade intelectual) aconselha a evitar os maniqueísmos das análises binárias. Se queremos uma discussão adulta destas questões, que tal recusar a imagem a preto-e-branco que acantona as direitas no passado e reconhece as esquerdas como as únicas fontes de que medra um (viçoso) amanhã?
(Registo de interesses: deploro os procuradores da “democracia iliberal”, os Venturas que berram em fingimento de democracia e concordo com Rui Tavares que o mecanismo do artigo 7.º do Tratado da União Europeia já devia ter sido ativado no caso da Hungria.)