21.5.24

Estação

Justice, “Generator”, in https://www.youtube.com/watch?v=MZTg2WMb8Ps

Os relógios estavam enganados. O vento soprava do lado contrário. As pessoas andavam com sapatos descasados. Os gatos vadios não fugiam das pessoas. Nas televisões, as más notícias estavam omissas há umas horas valentes. Os políticos meteram a hipocrisia no congelador (até ver). As pessoas não desconfiavam umas das outras e não eram boçais. Não havia beligerância disfarçada de desporto, a pretexto de inimizades regionais. 

As invejas estavam anestesiadas. Não havia maus modos à mesa (porque as pessoas abdicaram deles). As metáforas já não eram o refúgio de fingimentos avulsos, eram genuínos recursos estilísticos que enriqueciam a linguagem. A ironia tinha deixado de ser ofensiva. Os matadouros humanizaram-se. Já não havia injúrias causadas pelo apuramento da História. Os dogmas foram extintos. Os acontecimentos não pediam autorização. Em vez de julgamentos sumários, falava mais alto o respeito pela liberdade de os outros serem como eram. A lhaneza desta petição de princípio foi reconhecida.

A discriminação positiva foi extinta, enfim reconhecida como discriminação. As artes não precisavam de manual de instruções. As pessoas deixaram de trazer a tiracolo um manual de intenções e um prontuário sobre o esclarecimento da ironia que praticassem. As mentiras aconteciam, como é inato, mas não tinham consequências. Os sacerdotes do apocalipse entenderam que essa é uma bandeira puída. 

Já não havia “cães de guarda” a dormir ao relento e com a liberdade acorrentada. O epicurismo foi acertado. As ideias deixaram de ser treslidas e os outros faziam fé na boa-fé dos procuradores das ideias. Os poetas deixaram de ser indigentes, sem serem curadores da abastança. Os multimilionários fizeram a vontade aos socialistas de diversa cepa, que ficaram angustiados pela exaustão da causa ontológica. Os ociosos deixaram de ser perseguidos pelos bons costumes. Os bons costumes perderam o substantivo e o adjetivo.

Deixou de haver património da humanidade, porque a humanidade é um património inteiro e intemporal. Os sonhos já não eram risíveis. As armas deixaram de ser terçadas. A ciência não era ultrajada. Os indefetíveis nadadores do conservadorismo perderam as boias de salvação. Os apóstolos da sistemática vanguarda não tiveram tempo para rir: depressa caiu a sua máscara e um radicalismo de moeda oposta ficou à mostra. As intenções deixaram de ser intuídas. Os nomes passaram a valer pelos seus titulares. 

Já o mundo continuava repleto de imperfeições, reconhecidas e assumidas como tal, na maior prova da sua perfeita imperfeição.

Sem comentários: