31.5.24

Baixar os braços

Mogwai, “Remurdered” (live Quay Sessions), in https://www.youtube.com/watch?v=UbfoFRRUu2w

Deixa os baldios onde falam alto os espantalhos. Cada alvorada é um trunfo escasso, os olhos deitados no horizonte como se sua fosse a estampa vertical. Há ofensas por toda a parte, já devias ter aprendido os fundamentos da antropologia. Não desmentes os oráculos do passado. Esse é um tempo enquistado e não se presta aos serviços dos cuidadores das almas.

Se o jasmim cresce nas frontarias onde se acolhe o sol, não é por haver um dedo divino. Se as epifanias estivessem no dicionário, não havia sacerdotes a contá-las. Conta com a persuasão do teu sangue, do sangue que se alimenta das luas exangues depois de uma noite. Tu és esse sangue, deitas-te à noite corrompida pela insónia e extrais a seiva que o luar oferece. Juras que não o fazes por vingança.

Não queres ser declarado contumaz na safra dos dias repetidos. Às vezes, redizes as alocuções que afirmaste não repetir: não consegues domar os corredores estreitos do pensamento, são eles que tomam conta do vocabulário que se amontoa numa catalepsia de palavras. Dizem, de ti: és um elefante numa loja de porcelanas. E tu, exasperado pelo efeito sísmico do que dizes e do que fazes, sentes o sangue em ebulição: cada vez menos suportas frases feitas.

Imaginas os braços em baixo. Uma imagem todavia não decadente. Os braços estão grande parte do tempo em baixo. E não significa capitulação, ou deserção das empreitadas que escreveste no caderno de recados para memória futura. Pensas em cidades esquecidas. Em planícies cobertas por arbustos silvestres, como essa é uma imagem do universal equilíbrio que não obedece a nenhuma equação. Pensas nas mentiras que se contam às mentiras. Nos verbetes que podias preencher se fosses enciclopédico. Resistes e tudo isso. Esse não é o teu fadário. 

As romãzeiras desabrocham com o convite da Primavera. O mar frisado pela brisa tardia parece um papel retirado precocemente ao lixo. As pessoas continuam a ser monumentos por sua conta, à conta de um anonimato que se insurge contra as comoções frívolas. E o luar, restabelecido por poderes sortílegos, regressa ao céu para emprestar luz à noite. Já não há lugar a espantalhos. O tempo não se ocupa em ser uma infusão que te deixa sobressaltado à medida que a sua medida se torna exigente.

Os braços podem estar caídos, mas tu sabes que não representam a metáfora da rendição. Que de ti não se exija uma gramática para explicar os sinais deixados em letargia.

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