20.5.24

No calcanhar da justiça

Beth Gibbons, “Lost Changes”, in https://www.youtube.com/watch?v=sXRJWVvSGIs

No cabo dos bacalhoeiros, não ventava como nos outros cabos limítrofes. Dos dois lados do promontório, havia enseadas que cobravam o abrigo que os bacalhoeiros procuravam se o vento se sublevasse, dando às águas uma agitação tempestuosa. Este movimento iracundo do vento, em vésperas de os bacalhoeiros aportarem, era próprio de um agiota que extorque do plácido povo tudo o que tem até às costuras dos bolsos. 

(A quantidade de bacalhau que se podia perder, se não fosse o obséquio do cabo dos bacalhoeiros.)

A contingência trata de ratear a fortuna e o infortúnio. Atrás do bacalhoeiro que foi a tempo de se abrigar da intempérie, outros três da mesma frota ficaram à mercê do desamor dos mares e de Neptuno, o seu tutor. Os marinheiros embarcados nestes barcos tiraram a má rifa no apuramento avulso dos fados por calhar. A possibilidade de naufrágio latejava no sangue em ebulição, lutando arduamente contra os golpes de mar e o timoneiro já a entoar as melhores preces, entregando o leme do bacalhoeiro nas mãos fantasmas de uma divindade que se opunha a Neptuno.

Os minutos nunca mais terminavam. A tempestade embaciou o campo de visão, adulterado pelos solavancos feéricos que cavalgavam nos bacalhoeiros erráticos. Parecia o desterro em pleno mar: os pescadores tinham de ser marinheiros, mas já nem sabiam do tempo para as orações que lhes tinham ensinado na catequese e de que os mestres das embarcações exigiam conhecimento como requisito de admissão na tripulação.

A eternidade foi aliviada pelas tréguas da tempestade. O alvoroço do mar não cessou tão depressa. Mas os corações dos pescadores começaram a abrandar à medida que recuperaram a medida do horizonte. Os mestres recuperaram o domínio dos lemes e encaminharam os bacalhoeiros para o azimute do cabo dos bacalhoeiros, onde sabiam encontrar asilo. A safra estava protegida – os jornais já não poderiam exercer a sua propensão para o sensacionalismo caso os bacalhoeiros tivessem naufragado, mais preocupados com a escassa safra do peixe favorito que ditaria a sua carestia. 

(Como uns quantos cadáveres de um peixe nobre, à espera de serem retalhados depois de tirocínio na salga, valem mais do que duas mãos cheias de pescadores naufragados. Vai mal, ai pois vai, o capitalismo.)

Os bacalhoeiros tresmalhados iam pagando a ousadia do atraso com o naufrágio. Estiveram hipotecados, à mercê da justiça. Salvaram-se por pouco (logo depois, outro golpe de asa da tempestade: este teria sido fatal). Foram todos à boleia do calcanhar da justiça.

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