7.5.24

Loop (ou, as coisas inacabadas)

Pond, “Man It Feels Like Space Again” (live at Melkweg Amsterdam), in https://www.youtube.com/watch?v=cKpRy6n4ddw

O sumo que escorre da manhã certeira despe o dia dos preconceitos que a noite tinha legado. Diz: “este é o dia em que não vou deixar as empreitadas pela metade”. O dia começa promissor. Ter encaixado a jura interior era a prova.

E o dia continuava a prosseguir na sua radiosa feição. À hora do almoço já cumprira quatro pequenas, mas todavia incisivas, demandas. Algumas estavam pendentes do passado. 

(E como o passado era maldito, ou soava a maldito, quando  resgatava as pendências: era como se não deixasse de ser algo pela metade, ou até menos; olhava em redor, via pessoas, aparentemente felizes, outras meijengras, e tinha a impressão que elas não eram como ele, que deixava quase tudo por fazer para se enredar num mar interminável de distrações.)

Pela tarde, o pensamento começou a olhar para muitas árvores de fruto ao mesmo tempo. Era admirável esta sede de conhecimento, como porfiava para não estreitar os horizontes. Dispersava-se por um número tão grande de coisas que perdia o seu número, incapaz de as inventariar. Incapaz de saber onde tinham ficado as coisas pelo início de um processo e onde tinham ido uns passos adiante, mas nunca muito além do meio do caminho. 

A cabeça era embaixadora da errância. Forasteira constante, dando o braço aos ermos lugares que ardilosamente pediam asilo, catecúmena sem consumar as juras. Era uma cabeça que funcionava como palimpsesto, como se fosse um livro gigante desdobrado em títulos, por sua vez abertos em capítulos, secções, subsecções, itens avulsos. E ele deixava de saber onde estava a rédea dos processos de que era tutor: por exímia que a memória fosse, não era humanamente possível tutelar tanta matéria que queria ser o prisma do pensamento à procura de paradeiro.

Era uma cabeça em loop, uma gruta funda onde tinham morada as múltiplas personalidades em que se dividia. Ao fundo, numa arca gasta pelo tempo de que se distinguiam as dobradiças enferrujadas, alojadas as pendências, ora esquecidas, ora fingidamente negligenciadas no biombo da memória sacrificada. De tantas coisas inacabadas, sentia-se órfão de si mesmo. Em raros momentos de lucidez, tomava em mãos o siso que parecia extinto para se convencer que as coisas são sempre inacabadas, mesmo quando lhes costuram uma finitude à bainha. 

Que mal tinha ser mais um a encorpar o palco onde se terçam as farsas que tudo foram colonizando? 

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