16.5.24

O navio tem uma gramática

Expresso Transatlântico, “Porque Nada Tem um Fim”, in https://www.youtube.com/watch?v=GsEjhL6m4PE

O navio engole o mar, adultera o forte e de fraco tomou o mar que o separa do porto distante. Amanhece, não estremunhado, com a coragem para que foi feito no estaleiro sem paradeiro. No seu interior, a tripulação está de barriga cheia depois de uma breve temporada em que os homens estiveram desembarcados. As suas peles reluzem, como se a temporada em terra tivesse sido terapêutica e os homens houvessem frequentado spas para as almas. 

E como é um spa para a alma? No caso de marinheiros que atravessam os mares de fio a pavio, dando o corpo às piores tempestades, é poder ter os pés em terra assente. É o direito ao temporário exílio do mar, o eufemismo do descanso semanal, a evasão do salitre, da humidade tatuada nos ossos, do cabelo hirsuto de tanto sal que o cobre. 

Como é que um spa para a alma melhora a pele? Os marinheiros refugiam-se do mar, tornam-se temporariamente homens de terra, entregam-se às delícias de quem tem uma terra para habitar. Sem terem uma casa que possam dizer sua. Retiram a pele da erosão dos mares; é como se deixassem de ser homens do mar e encarnassem a sua antítese, tornando-se homens de terra (mas não da terra, pois são os maiores nómadas, não pertencem a terra nenhuma. Muito menos à que vem averbada como lugar de nascimento). 

Os marinheiros têm morada fiscal no alto mar. Por isso, estão isentos de impostos – o mar é tão extenso e tão alto se constitui que escapa a qualquer jurisdição terrena. A isenção dos marinheiros é legítima. Compensa o sacrifício de semanas inteiras submetidos ao cerco dos mares. Compensa o antídoto forçado contra os enjoos ditados pelo mar tempestuoso, as refeições desconsoladas, a dormida em beliches exíguos, a paisagem repetida. 

Os marinheiros veteranos, se se dessem aos cálculos criteriosos, chegariam à conclusão que foram mais os dias embarcados, com o mar indiferente por companhia, do que os dias a fazer companhia a terra firme. Pois é nestes termos que a questão deve ser colocada: eles é que acompanham a terra em que fundeiam, não o contrário. São lobos do mar. Desenraizados quando os pés assentam na terra-terra. 

Em todos os portos devia ser levantada uma estátua ao marinheiro. E outra aos seguros navios que são a sua morada.

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