Nick Cave & the Bad Seeds, “White Elephant” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=EpvGTav6TWU
Entro na casa dos sonhos e fico sem armas para saber de que são feitos os sonhos. É como se os pés andassem sem chão por baixo, ou uma trovoada ecoasse por dentro das veias, escurecendo o sangue. A metamorfose da noite valida as sombras que se demoram num exílio involuntário. Tudo o que acontece no sonho não aconteceu, mas parece que tingiu a pele com cicatrizes indeléveis.
O que separa um sonho de um pesadelo é um fino fio que torna a fronteira indeterminada. Os sonhos são habitados por pessoas e palavras que conspiram contra a medida habitual do tempo que nos alberga. Por dentro da casa dos sonhos, não sabemos se somos a mesma pessoa, ou se encarnamos noutras personagens que não chegaram a medrar na arcadas visíveis. Os sonhos oferecem alvíssaras que não têm tradução fora do sono.
Se o sono é trespassado por uma tempestade onírica, ele não termina com a exaustão que era o seu estado prévio. Os interstícios do pensamento estão ativos, intensamente ativos, libertando-se da vontade em que temos freio. Mas depois vem um sonho montado no dorso e a vontade em hibernação coloca-nos à mercê da contingência do sonho. Tornamo-nos atores. Seguimos um roteiro, seduzidos pelo papel de marionetas, seguindo as falas que o roteiro nos põe na boca.
É quando intuímos que os sonhos não são muito diferentes da tutela da vontade. Também somos atores congeminados numa constelação de acontecimentos acima da nossa vontade. Também somos acasos, movidos por uma gasolina exterior, atirados para latitudes que apetecem aos ventos rasantes. Somos figurantes, em vez de personagens. Mesmo quando tutelamos as nossas vidas, no desembaraço dos sonhos, e nos julgamos protagonistas.
Temos medo dos sonhos? Se for pelo risco de se transformarem em pesadelos, tememos os sonhos. Mas não devemos nada a esse medo. Não devemos nada aos pesadelos. Por vezes, o odor da realidade consuma pesadelos que dispensam o sono. O medo não deve ser transferido para o sono legítimo.
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