30.5.24

Turismo a mais? Entre identidade e cosmopolitismo

Trentemøller, “A Different Light”, in https://www.youtube.com/watch?v=LvFw_6_shUI

Os operadores de turismo exultam: há cada vez mais turistas. Algumas cidades rivalizam com os destinos mais populares na Europa. Quem anda pelas ruas centrais dessas cidades percebe o fenómeno: mais estrangeiros, a quase deserção do idioma pátrio, nas ruas ouve-se uma cacofonia de idiomas vários, a transformação das indústrias associadas ao turismo à medida dos turistas (restauração, lojas várias que servem os turistas, museus). Os operadores de turismo não podem deixar de exultar: este é um país que sempre dependeu (das receitas) do turismo. Quanto mais turistas nos visitarem, maiores os lucros destes operadores.

Quem compare algumas destas metrópoles antes de serem casos de estudo na indústria do turismo lembrar-se-á de como são abismais as diferenças. O centro da cidade quase deserto, perigosamente decadente à noite, viveiro de criminalidades várias, muitos edifícios abandonados, a cidade a morrer por dentro acossada pelo fantasma da decadência. O turismo reavivou o centro da cidade dantes prometido a ser apenas escombros. Os edifícios foram reabilitados, muitos deles convertidos à hotelaria; o número de restaurantes e estabelecimentos similares aumentou espetacularmente; os serviços de apoio ao turismo floresceram, criando muitos empregos; para quem tem sensibilidade cosmopolita, as cidades tornaram-se um viveiro de pessoas diferentes, uma amálgama de idiomas, habilitando a convivência com “o outro” que ajuda ao autoconhecimento.

Todavia, o êxito do turismo pode ser paradoxal. Talvez turismo a mais esteja a adulterar as cidades. Estão a mudar a sua feição à feição do turista. Os nativos deixaram de se rever na cidade, porque a sua identidade caducou. Por efeito da opção deliberada de casar a cidade com o turismo, há um esvaziamento da linhagem autêntica da cidade. Não se diga que as cidades não mudam; mas a transfiguração da cidade à mercê das exigências do turismo absorve a sua autenticidade, reinventando a cidade à revelia dos cidadãos que a habitam.

Em sentido contrário, perfilam-se dois argumentos que contrariam os efeitos adversos do turismo na talha das cidades. Primeiro, este é um movimento que vai ao encontro das exigências do turismo. E quem determina o que deve ser a cidade quando ela responde às exigências do turismo? Não são os turistas, que ninguém lhes pergunta, antes de serem turistas (ou mesmo depois da estadia turística), como deve ser a cidade. A resposta está nos agentes com interesse direto no turismo, com o beneplácito das autoridades (centrais, regionais e locais) que são responsáveis pela configuração da política turística. É uma escolha arbitrária. As “exigências do turismo” são ditadas a partir de dentro, de uma determinada conceção popular de turismo, que garante mais rendimentos e num curto espaço de tempo.

Em segundo lugar, diz-se que a anti-democraticidade da transfiguração da cidade permeável ao turismo é uma falácia. Não são apenas os habitantes que contam para a definição do que deve ser uma cidade que se molda às necessidades do turismo. Ainda que sejam visitantes ocasionais e a sua estadia seja efémera, os turistas também contam para a lógica democrática e participativa do que é a cidade que os acolhe. Não sendo habitantes, assiste aos turistas a mesma legitimidade que aos habitantes? Defender este argumento é uma empreitada onerosa. 

É impossível omitir outra dimensão: a reinvenção da cidade pode extinguir alguns dos traços típicos que compunham a sua idiossincrasia. Ela transforma-se para ser uma coisa diferente do que originalmente atraiu os turistas. É uma cidade virada para o turista, sobretudo para o turista que não tem grandes conhecimentos sobre o tipicismo da cidade e a aceita como ela lhe é apresentada, transfigurada. A cidade foi esculpida para ser diferente e os turistas são vítimas de um logro.

A adulteração da cidade é um produto dos operadores turísticos e das autoridades que consentem nessa adulteração. Os turistas compram, acriticamente, pacotes turísticos, lugares convencionados e uma cidade desambientada das suas raízes. Sem saberem, são cúmplices da re-identificação da cidade que transforma os nativos em forasteiros na sua própria cidade. Sem saberem, os turistas são elevados à condição de soberanos da cidade.

O muito que se perde durante este processo é a genuinidade da cidade prostituída ao turismo. À multidão de turistas não interessa apurar a identidade cultural autêntica da cidade que visitam. Os nativos são tomados por uma sensação de estranheza quando descem ao centro da cidade e o vêm tomado por uma multidão de estrangeiros, quase como se a cidade se tivesse tornado chão forasteiro. Perde-se a traça da cidade que capitulou perante a massificação do turismo e se abeirou de um abismo de difícil reversão. E destroçam-se as vantagens do cosmopolitismo geradas pela convivência com os outros, pois os outros são tão numerosos que já quase não se identificam, nas ruas centrípetas e talhadas para o turismo, os nativos. Com outra agravante: a reprodução destes argumentos tende a ser abusivamente aproveitada por uma já numerosa casta de intolerantes que têm anticorpos aos outros e defendem que os nativos devem merecer a preferência das autoridades.

Um turismo com esta linhagem baseia-se numa cidade que perde o azimute. É um turismo autofágico, que cedeu perante a lógica imediata do lucro, sem cuidar dos aspetos imateriais que deviam fazer a diferença ao cultivar a pertença de uma cidade como destino turístico. A massificação sempre teve a qualidade como adversária. Esta foi a escolha dos operadores de turismo com o consentimento cúmplice das autoridades: um turismo de grandes números, sem cuidar da qualidade – do turismo e da cidade que o acolhe –, um turismo que fez caducar os alicerces culturais da cidade. 

É um turismo que reproduz a “britanização” do turismo: a primeira coisa que o turista tipicamente britânico faz quando chega ao estrangeiro é saber onde se encontra o pub inglês. Porque adora ir de férias e continuar a sentir-se em casa. A cidade turística torna-se a casa que estes turistas procuram quando saem de casa. Para dano da cidade que os acolhe.

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