23.5.24

Anfiteatro (short stories #450)

God Is An Astronaut, “Fireflies and Empty Skies” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=FCwBJ-nhZlw

O braço de ferro compunha-se no crepúsculo da História. Os rostos sombrios apoderavam-se das ruas, tiravam dos nomes o ânimo que pudessem conter. Aproximava-se um anoitecer dilatório, o magma a deslaçar-se como se o futuro murmurasse uma convulsão meteórica. Os pássaros e os ocasionais gatos acusavam a perturbação, agitados, em pura desorientação; parecia que tinham perdido a capacidade motriz e vagueavam em coreografias erráticas, à mercê do acaso. Algumas vozes ensurdeciam nos corredores vagos que se escondiam nas águas-furtadas da cidade. Outros, em exílio para lugares ermos, acreditavam que o fim dos tempos só atingiria as metrópoles. Cheirava a um entediante estertor: já ninguém arriscava dizer uma palavra que fosse sobre o futuro. Até nisso a orfandade dos sentidos cobria as pessoas: tirando profecias estéreis, nunca se soube dizer uma palavra que fosse sobre o futuro. Só que agora as pessoas seguiam arqueadas pelo peso do medo, não caíam no logro que as anestesiava. As pessoas sentiam uma invernia a tomar posse do Verão que coincidia com o calendário. Os dias seriam de gelo –  temiam. O sangue haveria de mumificar ao ser assaltado pela inverneira ártica que estava quase a desmentir o apocalipse climático. Nunca houvera tanta desconfiança. Tanta violência desatada gratuitamente, só porque alguém se atravessou no caminho de outrem. As manhãs suavam a cansaço, o sono adulterado fermentava a véspera do sobressalto contínuo: as pessoas viviam acossadas com o horizonte plúmbeo que não se desinstalava do seu lugar centrípeto. Os nomes, desta vez, não contavam. A apatia desinvestia o estatuto de cidadania. As lágrimas secaram. As palavras já não chegavam para poemas, que estavam em vias de extinção. Oxalá as cores diuturnas desmentissem os ares pesados que secavam a respiração. Oxalá fosse apenas um pesadelo. Um apenas todavia tão povoado. Tinha de ser um pesadelo. Apenas.

Sem comentários: