10.5.24

Moção de censura

Anohni and the Johnsons, “Why Am I Alive Now?”, in https://www.youtube.com/watch?v=5NLyFXWEN0c

1.

Queriam servir sumo de limão. Por castigo. O azedume cítrico combina com a impressão que a limonada é indigeríveis se não vier somada de açúcar. Ninguém quer saber que adocicar os limões adultere a sua têmpera. As convenções acolhem muitas farsas da mesma igualha.

2.

Era dia de homenagem a uma vida inteira de dedicação à “causa pública”. O servidor dera muito de si à causa e ela fora moldada (e aperfeiçoada) à feição do seu voluntarismo. Talvez a corcunda encarnasse os sacrifícios que fez para que a causa tivesse reconhecimento e fosse acarinhada. O homenageado trazia às costas as cicatrizes dessa entrega. Não havia cura para as cicatrizes. A homenagem era como se fossem as exéquias antes do tempo. O homem terrivelmente envelhecido não esboçou um sorriso. Adivinhou o estertor, que devia acelerar após a homenagem. Não teve coragem de a recusar, tal o empenho dos delfins. Ninguém o desconvencia que a homenagem não era para si. Era para o empenho dos continuadores não perder vigor.

3.

Na fila para a caixa do supermercado, um casal bem apessoado despeja em cima do tapete caixas e mais caixas de vinhos. Não se importunam com os olhares indiscretos dos clientes vizinhos, nem com o esgar de cinismo que espreita pelo canto da boca da “operadora de caixa – Ana Luísa”. Os pergaminhos dispensam justificações. Às malvas, a democracia que é coincidir no supermercado com o demais povaréu.

4.

O pescador retira, através da cana de pesca, um peixe que deve ser enorme, a crer nos esticões que, um ou outro, quase derrubam o pescador. A força do pescador derrotou o peixe. O peixe tem envergadura. E uma cabeça que triplica o perímetro do corpo restante. O pescador acena a cabeça em sinal de desabono, percebeu que o peixe é inútil. Devolve-o ao rio, possivelmente moribundo. Quem disser que isto é pesca de lazer, pergunte ao peixe vítima da falsa generosidade do pescador.

5.

O padre da paróquia despacha os peregrinos que vão partir para a intendência sacrificial com uma reza apressada. Os peregrinos estão convencidos que a fé quadra com o sacrifício e a dor. “Sofre e abstém-te.” O padre está cheio de pressa – o jogo deve estar quase a começar. O jornalista que acompanha os peregrinos dispara uma pergunta provocatória: o padre aconselha que o percurso derradeiro maximize o sofrimento quando os peregrinos se ajoelham, arrastando-se penosamente até ao altar? O padre fingiu surdez. Aos dez minutos de jogo, o adversário já estava a ganhar dois-zero.

6. Era nas cumeadas, quando o silêncio tingia o tempo, que se refugiava das pessoas excessivas e da cidade contundente. O silêncio suspendia o tempo. Cercado pelas serranias à ilharga, sentia que a erosão do chão lhe devolvia a audácia que precisava para mais uma temporada de exílio na cidade. À falta de uma moção de censura, usam-se outros métodos.

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