2.5.24

Passerelle

New Order, “True Faith”, in https://www.youtube.com/watch?v=mfI1S0PKJR8

As trincheiras não servem para nada. Redutos irredutíveis, desaconselham a lucidez, tudo exacerbando. Os lugares-comuns tomam a vez do pensamento articulado. As posições são levadas para longe umas das outras e não há ponte que as consiga aproximar. Muitas vezes, a beligerância responde pelo exacerbado estado das coisas e remata a divergência com uma exibição de indigência indigesta. 

A oposição aos outros pode vir pela trela do antagonismo de ideias. Ou ser fermentada numa antipatia pessoal, que subjetiva as diferenças, tornando-as artificiais. Ou pode dever-se a mal-entendidos que nunca chegaram a ser dirimidos. Por falta de pontes, ou porque quem se situa em diferentes trincheiras não admite a possibilidade de lançar os esteios das pontes que facilitam uma aproximação. 

Confundem-se diferenças com antagonismo. Há quem se refugie no antagonismo pelo temor do pensamento uniforme. As diferenças arbitram o direito a não seguir o pensamento dos outros, porque alguém não se revê nesse pensamento (ou porque a antipatia pessoal se substitui a essa medida objetiva). As pontes levadiças estão à distância de um gesto. Não precisam de ser erguidas pela concórdia de quem discorda. Podem ser um simples ensaio, uns toros de madeira atirados ao caudal só para experimentar a aproximação das dissidências. O primeiro gesto, se for recompensado, pode industriar voos mais altos: uma passerelle que habilite a conversa entre os que estão em lugares diferentes.

As fronteiras físicas tornaram-se porosas e arcaicas e as pessoas cruzam territórios sem darem conta. Agora, as fronteiras acomodam-se na penúria das diferenças que se exacerbam em posições inconciliáveis. É o pensamento que abriga as novas fronteiras. Como dantes, foi preciso erguer pontes para atravessar fronteiras. As passerelles que subornam oposições exacerbadas são passerelles mentais. Não têm menos prestígio.

As passerelles entre diferentes pensamentos não intuem um pensamento homogéneo. Para bem da biodiversidade da espécie, os diferentes pensamentos deviam ser consagrados como património da humanidade. As passerelles animam o conhecimento recíproco, prevenindo a prescrição do diálogo. Atravessamos a passerelle para conhecer o pensamento diferente, para não nos afastarmos dele sem o conhecermos. E mesmo que nos desviemos da outra trincheira, ao atravessar a passerelle tomamos uma vacina contra o pensamento encolerizado que trava o conhecimento do pensamento contrário. 

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