29.5.24

Devia ser proibido dizer “a verdade é que”

Radiohead, “Reckoner”, in https://www.youtube.com/watch?v=_uofQD-N6UI

Não há maneira de os imperativos categóricos serem encomendados à prescrição. Não há maneira de ensinar ao cidadão atento que a verdade é que a verdade é muito contingente.

(E, portanto, para não ser refém da incoerência que pretendo desmatar, aquela frase deve ser remendada. Dir-se-á, mais modestamente, que a verdade é contingente, sem imputar ao enunciado a fama de uma verdade para não correr o risco do enunciado ser autodenunciado.)

Acontece muito nos debates de ideias, nas opiniões que se entretecem sobre a atualidade que desata o apetite de analistas de variada cepa, nas conclusões que se atiram para cima do destinatário depois de o autor embarcar numa colonoscopia da verdade. Parece ser fundamentado o receio da superficialidade das análises combinar com a elevada probabilidade de decretar verdades à prova de dolo, porque a análise não se submeteu à exigível anestesia que garante o didático distanciamento do objeto de análise. 

Os peritos são peritos neste método aproximativo: servem-se de potentes microscópios que anatomizam o objeto de análise, o método que julgam infalível. Tão infalível que costumam arrematar, para um público ávido em continuar na sua zona de conforto feita de verdades propugnadas por outros, uma verdade com o selo garantístico de que “a verdade é que”.

Tão minuciosa, tão atomizada é a análise que medra num puzzle milimétrico, que os mentores da verdade à prova de bala não têm lucidez para reconhecer que há outros elementos fora do seu método que podem adulterar a verdade incontingente em que laboram. São os cientistas exatos que aprenderam a nadar dentro de fronteiras e seriam errantes se se aventurassem em domínios que não pertencem ao seu domínio. Aparecem-nos, excitados com um truísmo disfarçado de eminente descoberta com a caução da ciência, como se a ciência não fosse infalível – como se a ciência não fosse o produto do tempo que muda e da ciência que brota dentro dela.

Incapazes de se submeterem a uma exegética anestesia que os traga para o exterior de si mesmos, estes peritos da infalibilidade desperdiçam o potencial heurístico das perguntas. Eles, que tanto procuram respostas, e respostas coroadas com deificadas vestes de uma “verdade que”, ignoram como fazer perguntas. Desconhecem que o proveito de saber fazer perguntas não é a demanda da verdade incontestável. Porque essa pode dizer apenas respeito a quem a formula. E se assim é, o seu agente nunca pode postular que “a verdade é que” seguida da verdade que assim é mercada.

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