5.3.04

21 gramas

O filme é perturbante e, ao início, confuso. Esta confusão explica-se pela técnica narrativa escolhida pelo realizador, Alejandro González Iñárritu. Ao fim de alguns minutos entende-se que o filme se desenrola em quatro momentos temporais diferenciados. É uma sucessão vertiginosa de momentos, em que o filme salta dos vários passados para o presente e regressa a momentos intermédios para voltar ao presente, com novas passagens pelos diferentes passados. Compreende-se esta alternância temporal pelos diferentes estados de alma e sobretudo físicos das personagens.

A personagem desempenhada por Sean Penn é um professor de matemática, na casa dos quarenta anos, que padece de uma grave doença de coração e necessita de um transplante. Espera com sofrimento em sua casa, preso a uma garrafa de oxigénio que lhe permite ultrapassar as dificuldades respiratórias. Eis senão quando a sua vida se cruza com a de outra personagem que se ia sucedendo em fases distintas do filme, até então sem qualquer ligação. A do marido daquela que virá a ser a sua companheira dois anos mais tarde. Este homem e as suas duas pequenas filhas são atropelados pela terceira personagem central do filme: um ex-condenado por vários pequenos crimes, que encontrou na fé cristã a regeneração interior que lhe permitiu reerguer a sua vida, reconstruir uma família. Pai e filhas morrem em consequência do acidente.

Como o primeiro ainda chegou com vida ao hospital, mas sem esperança de fugir a uma vida vegetativa, põe-se a questão de doar o seu coração. É aqui que as vidas das três personagens se entrecruzam definitivamente. Porque quem decide anuir na doação do coração é a mulher que acaba de perder o marido e as duas filhas. Mais tarde, já recuperado da cirurgia que lhe pôs um coração novo, este homem sente um chamamento interior para descobrir quem lhe doou o coração. É aqui que entra em contacto com a viúva e se apaixona por ela. É também aqui que a mulher desperta do entorpecimento em que viveu mergulhada durante meses e anseia por vingança, procurando matar o homem que ceifou a vida das filhas e do marido.

Imersos na cumplicidade do amor, os dois lançam-se em busca do homem que entretanto cumpriu dois anos de cadeia e renegou a sua família e a fé cristã, sentindo-se abandonado por um deus que ele serviu durante anos de forma tão dedicada. É num hotel de terceira categoria, situado à beira da estrada, que o encontro se dá. O homem, já novamente em sofrimento por o seu organismo ter rejeitado o coração que lhe foi transplantado, arma uma cilada ao assassino involuntário mas poupa-lhe a vida. Horas mais tarde, é este que arromba a porta do quarto onde o casal se encontrava e se oferece para sacrificar a sua vida. É ele que pega na arma e a coloca sob pressão junto à sua veia jugular, empurrando a mão do outro homem prestes a sucumbir à asfixia da doença. A mulher, cega pela sede de vingança, desata a bater violentamente com um candeeiro na cabeça de quem lhe roubou a vida das pessoas tão queridas. Eis senão quando o outro homem, jazendo em sofrimento, dispara um tiro em si mesmo.

As cenas finais são as de uma mulher que é informada que está grávida do homem que está na sala de operações. E de um homem que conseguiu ultrapassar os fantasmas do atropelamento e regressa a casa, para junto da sua família. A terceira personagem divaga, nos momentos finais da sua vida. Desta vez uma divagação matemática sobre a morte. Anuncia que no exacto momento em que o ser humano parte da vida perde vinte e um gramas. Vinte e um gramas. Será o peso da alma que se esvai no momento em que a vida se despede?

Apaga-se o homem que tinha a vida emprestada desde que recebeu um coração de outrem. Com a sua morte termina o filme. Deixa a sua marca na barriga da mulher. Que se sente vingada da morte do anterior marido e das duas filhas, ao saber que no seu ventre está um bebé que também é património de parte daquela vida familiar que foi tirada no fatal atropelamento. O homem que a ajudou a conceber aquele filho transportava o coração de quem gerou as duas meninas cuja vida foi roubada pelo jipe do fanático religioso. Era um ciclo que se completava. Perdida a vida de quem tinha pedido um coração emprestado, mas prolongada a sua existência numa vida que estava a ser gerada na gravidez, findava a sede de vingança desta mulher e o carrasco podia regressar, finalmente apaziguado, à sua vida normal.

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