22.3.04

Há um ano, a guerra no Iraque

No passado sábado fez um ano que se iniciou a intervenção militar no Iraque. Pelo mundo fora multiplicaram-se as manifestações de protesto contra esta guerra e a consequente ocupação militar. Por cá não escapámos a esta tendência de protesto. Os movimentos do costume, com o repetido folclore e as atoardas anacrónicas, não faltaram à chamada. Não podiam perder uma oportunidade para apontar o dedo aos Estados Unidos, como se esta fosse a alavanca que os faz mover-se numa acção política de contestação.

Neste tema há algumas coisas que partilho com estas esquerdas. Tal como elas, não aceito o papel dominante e intervencionista dos Estados Unidos no contexto internacional. Tal como elas, sou contra a guerra que findou com a deposição de Saddam Hussein. Perante esta coincidência de pontos de vista, interroguei-me se seria capaz de emparceirar com estas esquerdas nas manifestações de Lisboa e Porto? A resposta veio sem demora: não, não seria capaz de marchar em protesto lado a lado com estas personagens. Ainda que no conteúdo possa haver consonância entre o que penso e a retórica destas esquerdas, não me revejo nem nos meios utilizados nem, sobretudo, na falta de coerência que elas exibem.

Começando pelos meios. Pode ser apenas por uma questão estética, mas não consigo compreender o arregimentar de massas que, qual rebanho ordeiro, respondem à chamada dos chefes e marcham rua fora puxando pelos pulmões, arrebatando uma imaginação fértil com os slogans, faixas e encenações que vêm à superfície durante o protesto. Talvez seja a minha essência individualista, mas tenho suspeitas acerca da legitimidade destas manifestações em que o “colectivo” dá mostras de uma força indomável, quando na verdade há sempre uns indivíduos que manobram os cordelinhos. Como nunca gostei de ser instrumentalizado por ninguém, eis o primeiro motivo que não me levaria a sair à rua de mão dada com esta gente.

Mais importante é a falta de coerência que estas esquerdas demonstram. Para elas só certas guerras, protagonizadas por certos países de que não gostam, é que merecem protesto público. Nunca as vimos, no passado, a sair à rua num coro de protestos contra a invasão soviética no Afeganistão, ou contra a abusiva presença de tropas cubanas em Angola, ou contra as atrocidades que o regime de Milosevic cometia na espartilhada Jugoslávia. Nem muito menos as ouvimos a erguer as suas roucas gargantas em dizeres de protesto contra os regimes ditatoriais em Cuba, Coreia do Norte, Venezuela, Angola, Zimbabué, Bielo-Rússia.

É esta falta de coerência que me repugna. Ao contrário deles, qualquer tipo de guerra suscita a minha discordância. Porque qualquer tipo de guerra serve apenas para perpetuar o totalitarismo do Estado sobre o cidadão – de qualquer tipo de Estado que se socorra da guerra, independentemente do rótulo ideológico que se coloque no governo que a desencadeia. Ao contrário deles, não me insurjo apenas contra as guerras alimentadas pelos Estados Unidos. Bem sei que lhes é conveniente afinar a baioneta contra os Estados Unidos e outros países que representam o “asqueroso capitalismo”. Afinal trata-se do oxigénio que move esta gente, como se a única causa seja a destruição do Satã norte-americano.

Não há nada da política dos Estados Unidos que cative a minha simpatia, hoje como ao vasculhar os últimos cinquenta anos. Mas se algum dia me fosse dado a escolher, numa absurda hipótese dualista, ser governado à moda destas esquerdas ou pelo modelo norte-americano, escolhia o mal menor – o dos Estados Unidos. Ao menos sempre há o respeito de um reduto mínimo de liberdade individual, coisa que as esquerdas radicais do nosso país são incapazes de garantir.

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