29.3.04

À descoberta da fome

A notícia tem já uma semana. O Público difundiu uma reportagem baseada num estudo do presidente do Conselho Económico e Social, Alfredo Bruto da Costa, sobre a incidência da pobreza em Portugal. Em tons alarmistas concluía que cerca de 200.000 pessoas passam fome. Mas não se fechava a porta a que este número pudesse atingir uma dimensão brutalmente superior – cerca de dois milhões de pessoas.

Ao longo da semana foram várias as manifestações compungidas. As mágoas foram sendo carpidas pela preocupante dimensão da fome no país. O próprio Expresso, quase oito dias depois do Público, não podia deixar passar em branco o assunto e também pintava o cenário em tons sombrios. Não sei se influenciado pela súbita vaga de pessimismo que inundou o país, o incontornável Mário Soares descobriu, sexta-feira à noite, que desde a revolução de Abril de 1974 nunca o país esteve tal mal como agora. Baseava-se em que evidências? Na fome que se descobriu, do dia para a noite? Ou estaria a confundir o tempo presente com aquele em que ele próprio foi primeiro-ministro?

Volto à fome. Não sei se hei-de ficar admirado pelo facto das análises tecidas terem dado à estampa um rol de carpideiras que envergonhadamente enxugavam as suas lágrimas por haver tanta gente à míngua. Corro o risco de ser acusado de insensibilidade humana, mas apetece-me concluir que esta choradeira colectiva não passa de um exercício de interiorização da culpa de cada um que foi surpreendido pela dimensão da fome. Ou tratou-se de um oportunista exercício de introspecção colectiva para atacar quem está no poder, como se os governos do passado não fossem (também) culpados pela situação.

É neste disparar em todos os sentidos que vejo uma interiorização de culpa. Não conseguem dormir descansados com a sua consciência por tanto verberarem a repatriação desigual da riqueza, mas são eles os primeiros a esquecer de passar à prática o que apregoam na teoria.

Não me vou alongar acerca da necessidade de termos um Estado activo no combate às fontes de pobreza, às causas onde radica a perene injustiça social. Quero apenas concluir com uma nota de estranheza pelos dados divulgados pelo Público. Se existe tanta fome, porque motivo há, num certo local do Porto, tanta gente que é destinatária do rendimento mínimo garantido a tomar o seu lauto pequeno-almoço numa confeitaria situada num local chique, mesmo junto aos escritórios locais do jornal que publicou este estudo?

Não sei como finalizar: se com regozijo, porque o rendimento mínimo garantido (RMN) até cria as condições para que pessoas carenciadas se possam dar ao luxo de tomar o pequeno-almoço no mesmo local onde os privilegiados jornalistas do Público o fazem; ou se revelar a minha estranheza, porque no fim de contas parece que a fome está a ser mitigada pelo RMN, que até permite a estas pessoas, à saída do pequeno-almoço, dar uma saltada ao clube de vídeo e levar uns DVD para casa. Mas neste caso a bota não bate com a perdigota: ou a fome existe e o RMN é um fracasso; ou, se este mecanismo foi um sucesso (como o parece comprovar aquele caso localizado, bem perto dos escritórios do Público), o estudo de Bruto da Costa não faz sentido.

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