O triste espectáculo oferecido por Avelino Ferreira Torres, num dos muitos condóminos público-privados a que deu o seu nome, merece uma atenta reflexão. Não vou pelos caminhos da maioria dos analistas. Não vou enfatizar o atroz espectáculo. Não vou apontar a dedo as consequências negativas da invasão de campo e das ameaças dirigidas ao árbitro. Também a mansidão patética da GNR não merece alongados comentários (fosse outro o indivíduo e a GNR teria agido energicamente, com bastonadas dissuasoras). Não me vou demorar nas manifestações do pior latino-americanismo de quem devia ter tento na língua (e na cabeça). Nem uma palavra vou dizer sobre a verborreia indigesta que o autarca marcoense verteu em sucessivos canais televisivos, sem ter a consciência de que a cada palavra que debitava mais e mais se enterrava no lodaçal em que tão bem vegeta.
O episódio de domingo veio pôr em destaque algo mais importante: as consequências da descentralização. Sou favorável a uma ampla descentralização política e financeira, quer no país quer no quadro da União Europeia. Sou-o por convicção, por acreditar num modelo de filosofia política que destaca os benefícios de uma acção política conduzida o mais próximo possível dos cidadãos.
Para quem se afirma partidário da descentralização, o municipalismo é um dos seus esteios. Aliás, a história de Portugal é pródiga numa forte tradição municipalista. Os problemas sentidos à escala local devem ser resolvidos a esse mesmo nível. Sem a interferência de burocratas sentados no remanso dos seus recônditos gabinetes num qualquer ponto de Lisboa, sem nunca terem ido aos locais onde os problemas reais são sentidos. Defendo uma descentralização efectiva, não apenas uma descentralização mascarada que consista na atribuição de competências aos municípios sem haver a distribuição de poderes ao nível financeiro.
No entanto, o cadastro autárquico do país é tão assustador que fico num beco sem saída. Não é apenas o exemplo de Avelino Ferreira Torres. Este é apenas um entre muitos exemplos de autarcas que se perpetuam no poder, que constroem fortunas fabulosas enquanto lideram os destinos do município, que fidelizam clientelas perversas que partilham as migalhas de um bolo que serve para manter sempre os mesmos no poder, cultivando o caciquismo que subverte a democracia.
O autarca do Marco é apenas um exemplo entre os seus pares. Basta percorrer a geografia nacional de lés a lés para encontrar outros casos perigosos. Citando de cor, Narciso Miranda, Mário de Almeida, Fernando Gomes, Fátima Felgueiras, Daniel Campelo, Isaltino Morais, Abílio Fernandes (e assim percorremos todo o arco político nacional, com a excepção dos neófitos bloquistas de esquerda) não andam longe de Ferreira Torres na prática governativa. Descontando os excessos de linguagem que fazem do autarca do Marco uma figura trágico-cómica do panorama político nacional, as diferenças não são acentuadas.
É com esta paisagem de desconfiança que me interrogo: se o modelo de descentralização que defendo fosse levado à prática; com o panorama perverso que já hoje observamos no mapa da política autárquica, ainda que esta gente seja responsável pela gestão de recursos limitados; o que teríamos se lhes fosse dada a possibilidade de deitarem a mão aos meios financeiros que a descentralização lhes traria? Eis o meu dilema: defender um modelo de descentralização que teoricamente tem todas as condições para funcionar, mas reconhecer que com os espécimes que povoam a política autárquica nacional esta opção poderia ser trágica para o país.
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