26.3.04

Lost in translation

Charlotte, uma jovem acabada de se formar em filosofia, está em Tóquio com o marido, um fotógrafo asfixiado pelo trabalho. Despejada na solidão, Charlotte sente-se perdida na frenética cidade. Perdida num mar de estranhos, perdida na vida, sem saber o que fazer agora que deixou de estudar. Perdida até no casamento, sem ter a certeza se deu o passo correcto.

Bob aterra em Tóquio para participar numa campanha publicitária para uma marca de whisky japonês. Aturdido pelo fuso horário, pela irritante hospitalidade japonesa, e pelo estranho realizador da campanha, Bob também não sabe o que fazer às horas nocturnas em que o sono se recusa a chegar. Acaba por afluir ao bar do hotel onde trava conhecimento com Charlotte. A intimidade entre ambos vai crescendo quando o marido de Charlotte se ausenta por uns dias. Ambos deambulam por Tóquio, vencidos pela insónia de quem não conseguiu derrotar a diferença de fuso horário.

Sucedem-se pequenos diálogos onde os silêncios são geridos com perfeição. Valem mais pelas meias palavras que ficam por dizer. E pelos olhares furtivos que, à passagem do tempo, se vão trocando. Ambos partilham uma desorientação em relação ao mundo e aos desamores que os causticam. É nesta cumplicidade que vai crescendo uma atracção recíproca. Sem, contudo, permitirem a sua revelação. Apenas descaindo nos olhares que se esquivam, envergonhados, pelo canto do olho. Talvez a barreira inicial seja a diferença de idades. Bob podia ser pai de Charlotte. À medida que as horas passam e a convivência cresce, vão vencendo as defesas interiores. Ambos sentem que querem partilhar o pouco tempo que lhes resta em Tóquio, como se aqueles dois dias fossem os dias que faltavam para o mundo terminar. Sabem que no regresso a casa perderão o rasto.

Há uma nítida dimensão platónica do sentimento que vai crescendo dentro de ambos. Este platonismo é alimentando por Bob, mais ainda quando não consegue resistir à libido, aos encantos de uma voluptuosa mas desinteressante cantora do bar do hotel, e à força destemperada do álcool ingerido. Bob concretiza com a cantora do bar aquilo que idealiza com Charlotte. Idealiza mas é incapaz de passar à acção. Sentindo que a força dos laços sensoriais que os foi unindo naquelas esparsas horas era um obstáculo à instinto carnal.

E, no entanto, alimentavam a atracção. Passava o tempo e os dois queriam estar mais tempo um com o outro. Fosse como refúgio da crise interior que a ambos dilacerava, assim se expondo a uma atracção recíproca. Charlotte, desorientada quanto ao rumo de vida; Bob, desencantando com a sua carreira de actor, resignado a um casamento rotineiro que já tinha perdido a chama de outrora, mergulhado numa crise de meia-idade. Desencontrados de si mesmos, estavam descomprometidos para algo que veio do nada e em breve jorrou com uma intensidade inesperada. Quando deram conta estavam presos um ao outro, ainda que muito tenham batalhado para o evitarem. Seria a força das circunstâncias, ou apenas um genuíno apelo vindo do interior a clamar por um corte radical com o passado?

Bob despede-se do Japão deixando Charlotte entregue a si mesma. Sem haver declarações, sem haver despedidas emocionais. Até que, num assomo de arrependimento, Bob descobre-a entre a multidão, na delirante Tóquio. Vence o conformismo e abraça-a, num longo e apertado abraço que termina num intenso beijo de despedida. Aquilo que até então se confundia com um amor paternal revela-se na sua verdadeira dimensão: um amor como qualquer outro, nascido e consumido na voragem do tempo. Num ensaio do efémero que traz uma fecunda intensidade de vida. Mas amor ou atracção? Atracção feita amor, espontâneo, pelo próprio e pelo outro?


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