24.3.04

Médio Oriente a ferro e fogo (sobre a morte de Yassin)

Esperei dois dias para escrever sobre a morte do sheik Yassin. Esperei dois dias para reflectir sobre o episódio, mais um, do barril de pólvora que não consegue ter os vários rastilhos apagados. Esperei dois dias para ver se os radicais islâmicos iam reagir com violência contra este ataque do exército israelita.

Passadas 48 horas, as prometidas retaliações não se consumaram. Quem esteja no seu juízo não pode esperar que os fundamentalistas palestinianos chorem de braços caídos a morte de Yassin. Sabemos que o valor da vida humana é escasso para os radicais islâmicos, perante outras oferendas espirituais que os cânones religiosos prometem na vida pós-terrena. O que é suficiente para darem o peito pela causa, numa orgia de morte que deixa um rasto de sangue, ceifando vidas inocentes, num rumo incessante de violência que conduz a região para um destino incógnito.

Não consegui chorar a morte de Yassin, ainda que reconheça na causa palestina uma grande dose de razão. Não consegui lamentar a morte do “líder espiritual” do Hamas porque ele foi também uma fonte insaciável do terror. Mas não exultei com a sua morte, como o fizeram sem pudor alguns sectores mais enfeudados ao judaísmo.

Não é aceitável veicular a ideia de que era isto que Yassin merecia porque patrocinou tanto terror e dilacerou a população de Israel com incontáveis atentados e violência gratuita. Afinar por este diapasão encerra uma negação dos valores que os defensores da superioridade da civilização ocidental não se cansam de apregoar. Para estes etnocêntricos, nós, os ocidentais, somos melhores do que os árabes. Porque damos valor à vida humana, porque respeitamos um catálogo mais extenso de direitos humanos. Porque somos “Estados de direito” que se orgulham de possuir leis que são respeitadas por todos, e procedimentos judiciais que não aceitam a lei de Talião – “olho por olho, dente por dente”.

Manifestar contentamento pela morte de Yassin, invocando o seu passado de terrorista, é enveredar pela estrada do “olho por olho dente por dente”. É jogar o mesmo jogo dos radicais islâmicos que é tão censurado e que leva os arautos da superioridade moral do ocidente a proclamar a sua causa distintiva. Não é fazendo o mesmo jogo que se pode reivindicar a diferença que constitui o capital de uma pretensa superioridade. Pelo contrário, cair neste jogo de iguais não permite estabelecer qualquer diferença.

Intriga-me a conduta dos sucessivos governos de Israel que têm fomentado mais terror ao reagir aos atentados perpetrados pelos terroristas palestinos. Sem conseguirem perceber que se trata de uma interminável bola de neve que, descendo a ladeira, engrossa e fica imparável. Com o derradeiro episódio de violência, se fosse um cidadão israelita a minha angústia seria agora ainda mais permanente, sem saber se a noite que acabei de dormir foi a minha última noite de um sono repousado junto dos entes queridos. Porque, quem sabe, no dia seguinte um fanático palestino entra no café, no autocarro, ou no comboio e comete um atentado suicida que me leva deste mundo.

A decisão do governo de Sharon é insensata porque não é solução para o problema que atormenta os judeus. Pelo contrário, é mais uma acha que alimenta a fogueira em que judeus e palestinos se vão consumindo, merecendo-se uns aos outros.



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