Vinha anunciado num jornal: uma empresa aproveitou os despojos do estádio do Benfica que foi demolido, reciclou o betão armado e produziu pequenos utensílios evocativos do desaparecido estádio. Espera-se que os apaniguados do Benfica acorram em massa, numa azáfama saudosista, em busca das relíquias que testemunharam as glórias que andam arredias do passado recente. Como se espera que os outros clubes não percam tempo e façam a negociata com uma empresa, com os mesmos propósitos. Sempre são uns euros que entram em caixa, agora que as finanças dos clubes andam depauperadas, consumidas pela crise e por anos a fio de gastos sumptuosos.
Ao ler atentamente o anúncio, dois aspectos chamam a minha atenção. Primeiro, a retórica. Lá se avisa que se trata do cimento reciclado da “catedral”. Assim mesmo, da “catedral”. Eis como se confirma a ideia de que o futebol é um sucedâneo da religião, levantando massas numa clubite ardente que aniquila o racionalismo. À imagem da religião, também o futebol conduz cegamente as emoções. Incendeia paixões e ódios, é o sustento para milhões de almas que variam o estado de espírito consoante os sucessos ou insucessos desportivos do “clube do coração”.
Tal como a religião, também o futebol é um ópio do povo. Talvez até se verifique uma passagem de testemunho, agora que a fé parece atravessar uma crise na captação de crentes. O cepticismo religioso causa um entorpecimento que conduz as almas tresmalhadas a coisas mais terrenas, como o futebol. Na essência tudo se resume a uma simples substituição de crença. Os ritos não diferem, como a mobilização e o irracionalismo. A ignorância continua a ser o sustento do futebol, como o é da religião.
A segunda observação leva-me ao simbolismo da iniciativa comercial. A imagem que subitamente me acorreu foi a de ver a venda dos restos do estádio da Luz da mesma forma que hoje, mais de dez anos passados sobre a queda do muro de Berlim, ainda é possível encontrar recordações onde pequenos detritos do muro aparecem incrustados. Em Berlim como em Benfica, a queda de um mito. Para os saudosistas de uma ideologia, para aqueles que trazem um nó no coração porque o ideal de uma sociedade sem classes faz parte do pó que o passado consome; para aqueles que, em Lisboa, vêm os anos passar sem o sabor do gosto da vitória. Para uns e para outros, a ilusão do tempo passado traz a inevitabilidade de se agarrarem ao espólio que representa os tempos áureos.
Em Berlim os turistas que procuram os pequenos souvenirs contendo pedaços do muro derrubado não são conduzidos pela saudade dos tempos da vergonhosa repressão que o muro impunha. Antes fazem-no como sinal do conforto interior por saberem que onde estava a divisão artificial de um povo irmão está agora um via livre. Trazer de Berlim essas pequenas recordações tem o enorme significado de comemorar a derrocada do comunismo.
Voltando à escala doméstica, e pegando nesta analogia, quem sabe se os fanáticos adeptos de outros clubes não desatam a comprar os restos reciclados do velho estádio da Luz. Numa manifestação escatológica que, para eles, representa uma libertação dos anos sucessivos de dominação exercida pelo Benfica. Como quem diz, alto e bom som, que os tempos em que o Benfica dominava por ser o "clube do regime" pertencem ao passado. Esse tempo está enterrado. Não só pela inépcia do Benfica, mas também porque a dominação à custa da batota é agora privilégio de outra agremiação, mais a norte.
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