8.3.13

Poção mágica


In http://www.momentospreciosos.info/datas_comemorativas/pocao_magica_7.gif
Estava rendido ao poder da ficção. Naquele dia o jornal diário só tinha notícias ficcionadas, um avantajado faz-de-conta que tirava as insónias de seu posto. Era como se um deus folião, vestido em sua bondade, tivesse furtado o chão às notícias habituais, as notícias que fazem má cara e nos põem de má cara. Era a vez do caldeirão da ficção.
A certa altura, um torpor tomou conta dos sentidos. Já não sabia onde terminava a ficção e principiava a modernidade que era consumição. A ficção transformara-se em modernidade palpável. Depois do embaciamento dos sentidos, perguntou se o contrário não estaria em plena narrativa, se a modernidade deixara de ser palpável ao ter sido colonizada pela ficção. Por via das dúvidas, escolheu o vicejante campo da fantasia. Pior não seria, tão nauseabundo o odor do contemporâneo. (Só não sabia se imputava a culpa aos jornalistas que perseguem notícias que destilam sangue, ou se a arrastava para cima dos agentes responsáveis, os mandadores disto e arredores.)
Os olhos saíam pela janela e apoderavam-se de uma energia infinita vinda de Cassiopeia. Começavam a adejar sobre a cidade, depois o rio, fazendo digressão pelo mar para se alimentarem da maresia esbracejada pela brisa sensível. Voltavam os olhos a esquadrinhar terra firme, os campos e as povoações seguindo-se uns aos outros. Os olhos vinham acompanhados por um druida que abençoava com uma quimera de bondade os sítios alvejados pelos olhos. Passaram sobre um quartel. Os olhos instruíram o druida para dissolver o quartel, os militares despojados do fardamento e enviados para o meio dos civis para serem como eles (civis). Os olhos eram juiz perene, andando todas as terras por onde houvesse despistes à bondade lacrada pela vontade indómita. Retiravam o trono aos mandadores que usassem o poder para fazer malfeitorias aos governados. Os palradores prolixos eram enviados para férias compulsivas. Bardos, ou os que a esta condição se arvorassem, metidos em balsas e desembarcados em ilhas desertas, na companhia de músicos da estética duvidosa. Os grotescos que maltratassem animais teriam degredo como destino. Gente de trato rude perderia o atributo, de repente transformada em gente empenhada na simpatia. 
A meio do dia, uma (generosa) inquietação abrolhou-se: foi preciso cair no desemprego para ter luminescentes pensamentos. Para que as alvoradas despontassem resplandecentes, mesmo quando um manto de nuvens carregadas açambarcavam o que podia ser jornada soalheira. Agora que tinha motivos para se encostar às esquinas com o rosto carrancudo, conseguia ver uma centelha, por mais fina que fosse, a espreitar de um umbral qualquer.
Um fantasma teimava em ensombrar o palco desta fantasia: aqueles olhos emparelhados ao druida eram juiz sem investidura legítima. Tamanha moralidade chegava para soar o alarme da desconfiança.

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