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No entardecer brumoso, à falta de
outra serventia do tempo, pegou num livro da estante. O primeiro a que os dedos
meteram carne. Veio poesia. Herança de uma antiga namorada que se esquecera do
espólio não reclamado. Dele não se sabia sensibilidade para a poesia. Mas estes
dias sem rotina eram a procura de algo que viesse sombrear a diferença do habitual.
Assim como assim, a reviravolta que a vida dera, agora que a ocupação do tempo
excessivo era passatempo forçado (não fosse a sanidade mental ressentir-se),
convocava caminhos insondados. Abraçava-se ao que nunca julgara ser manifesto
no mapa quotidiano. A poesia era a próxima novidade.
A bruma lá fora compunha o cenário
propício aos poemas densos que traziam os olhos cativos. Dantes não julgara ser
capaz de ter um livro de poesia nas mãos por um par de horas. E elas já iam,
essas horas, sem que o interesse decaísse. Não deu conta do tempo passar.
Descobria outro gosto sufocado na vida (sabe-o agora) desinteressante que
levava naquela longa altura em que grande parte do tempo era consumido com trabalho
desinteressante.
Reteve uma estrofe: “tenho de inventar a minha vida verdadeira.”
Releu o verso, vezes e vezes. Tecia analogias mentais com o desafio embainhado
há semanas, desde que deixara de contar para a população ativa. Transformou o
verso, mudando o ponto final por uma interrogativa: “tenho de inventar a minha vida verdadeira?” Foi a pergunta que não
o abandonou nos dias que vieram depois de rompida a rotina de tantos anos.
Depressa soube dar resposta – e ela foi sim. Voltou à introspeção, tomando a
interrogação como mote numa suave mutação: “tenho
conseguido inventar a minha vida verdadeira?”
Pousou o livro entreaberto na página
onde repousava o verso que tomara a atenção. Deixou o pensamento ir em sua
liberdade, ora esbarrando no atrito das ideias feitas, ora escorregando no
musgo que fecunda o rompimento com essas ideias feitas. Espreitou sobre os
meses de vida reinventada. O orgulho espreitou à superfície. Não tinha saudades
de ter um emprego – pelo menos como o emprego enfadonho que deixara de ter.
Redescobrira o que já esquecera e muito mais eram as conquistas para o
conhecimento. Dele diziam os mais próximos que o olhar tinha um brilho de que
já não se lembravam (uns) ou que não conheciam (outros). Foi preciso o
sobressalto para nascer uma oferenda airosa, sem que o crepúsculo se
intimidasse com o amanhã que se anunciava enferrujado.
Na manhã que veio a seguir, ainda na
cama, resgatou o livro ainda aberto na mesma página. Deu conta que o verso que
transformara em interrogação semeou outra inquietação: dantes a vida que levava
não seria verdadeira. Mas não vinha daí mal ao mundo. Antes chegar a tempo de
uma vida. Nem havia tempo para gastar com o arrependimento que o seria se o
sobressalto pela vida quimérica se prolongasse para o tempo que estava à espera
de o ser.
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