25.3.13

A cor levemente acidulada da tempestade


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Ao anoitecer, passara pela vizinha hippy do terceiro esquerdo. Já não a via desde que ela e as militantes amigas o tentaram convencer a engrossar a manifestação a que, diziam, todos os lúcidos deviam ir. Soubera naquele dia que, para os propósitos da seita, não era lúcido. Como se já não chegassem as inquietações tardias – aquelas que já deviam ter tido seu banho-maria e que o anestesiava como se nada de estranho se passasse – tinha de lidar com um prelúdio de sono colonizado pela vizinha hippy e sua trupe. Não conseguia explicar que a ausência de lucidez (tal era o libelo acusatório) fosse consumição só uns meses mais tarde. Era outra insónia que estava à espreita – receou.
A certa altura, a lucidez que não havia parecia medrar o seu contraponto em forma de exercício surrealista. Jurara ter visto a vizinha hippy em roupa interior a cuidar do estendal onde acamavam lençóis floridos com retratos estilizados do Che Guevara. A mulher sem pudor, ostentando as carnes flácidas amparadas pela lingerie que mais parecia de uma manequim contratada para ensaio fotográfico cheio de erotismo. Um cenário dantesco. Ela deixou cair uma mola que veio aterrar no chapéu de coco de um estilista que palmilhava a calçada vetusta enquanto falava em italiano ao telemóvel. O chapéu descaiu três centímetros e descompôs a melena aloirada do estilista (de um loiro oxigenado). Assustado com o troar da mola em cima do chapéu, largou o telemóvel que se estatelou (com estilo, a condizer) entre as frinchas de uma tampa de esgoto. O estilista olhou ao alto e viu a mulher de carnes avantajadas em trajes menores, assoberbada com as lides domésticas enquanto ouvia, através de uns auriculares, talvez Joan Baez, talvez José Mário Branco, talvez Adriano Correia de Oliveira.
O estilista vociferou, perante a indiferença da hippy (que o não ouvia, só notava alguém que do solo esbracejava, iracundo). O presidente da junta de freguesia estava de passagem. Quando o carro parou por à sua frente o camião do lixo fazer inversão de marcha, o presidente da junta notou no burburinho montado pelo estilista. Mediador, como é timbre dos autarcas das freguesias, ordenou ao motorista para estacionar em segunda fila (“e não se esqueça de ligar os quatro piscas, Anselmo”). Já não foi a tempo de travar o estilista de arremessar uma pedra da calçada para a varanda onde estava a mulher indiferente. Deixou de o estar quando sentiu a pedra atingir uma das coxas carnudas.
Esquecendo-se dos pergaminhos pacifistas que quadram com a pose anacrónica, meteu as mãos aos quadris, qual varina de lota, e berrou ao estilista: “olha lá, queres que te despeje este balde de água imunda?”. Ao que o estilista lá se conseguiu ouvir, depois de a mulher tirar os auriculares: “e quem me paga o telemóvel que se perdeu no esgoto, ó senhora?”. A mulher, de cabeça perdida (para enxovalho dos pergaminhos pacifistas), lançou o balde do alto da varanda. No exato momento em que o presidente da junta oferecia préstimos para sanar o atrito. A água não acertou no estilista desafiador. Despejou-se pelo corpo do presidente da junta de freguesia.
Mas tudo não passara de um sonho que foi anunciação do sono que derrotara a insónia. A mulher que ainda vivia religiosamente na década de sessenta merecia a pior das sortes, caso o sonho houvesse perseverado.

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