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Logística tratada. O que
julgara ser o maior obstáculo à caridade no terreno, pois nunca fora seu forte
ser metódico. Uma vez que se convencera que tinha de experimentar a caridade
por dentro, sabia que não podia ir sozinho na aventura. Tinha de se juntar a um
grupo de voluntários que percorre as ruas da cidade oferecendo alimento quente
e agasalho a quem vive sem teto. Uma amiga tratou da logística. Ela tinha uma
prima que era voluntária habitual numa dessas organizações.
Combinado dia e hora numa reunião onde foram
ensinados preceitos básicos, juntou-se à equipa de voluntários. Sem grande
entusiasmo. Meteram-lhe um colete refletor no dorso, o colete de cor tão
garrida que agredia os olhos, ostentando nas costas o dístico da organização
(uma ave alva segurando pelo bico um alforge de mantimentos). Meteram-se pelas
ruas, obedecendo ao trajeto estudado. A cada paragem, os voluntários como ele
desciam da carrinha e emprestavam-se ao frio e à chuva. Até a meteorologia
estava a preceito da provação a que se convencera dar. As bátegas de chuva
sacudidas pelo vento proceloso entravam até em sítios escondidos do céu. No ir
e vir entre a carrinha onde estavam os mantimentos e os sem-abrigo que se
mantinham recolhidos, estava com o rosto ensopado. Não tiritava de frio porque
os trajetos cá e lá e o peso dos descarregamentos eram tarefas penosas.
A paisagem de necessidade, que não mudava a cada
recanto povoado de mendigos, um desafio para os sentidos que andaram ausentes.
Havia momentos, no repouso entre duas entregas, em que era assaltado pela
acusação de alguns dos mais próximos que não entendiam como podia ele ser insensível
à indigência dos desprotegidos. Jurara que não ia contar aos mais próximos que
aquela noite fora de alistamento nos voluntários que aliviam as dores básicas
de quem andava arredio da fortuna. A experiência não era para provar nada a
ninguém. Só a ele próprio.
As horas pela noite dentro foram pródigas em
misérias várias. Viu gente de todas as idades. Uns em estado adiantado de
decadência, outros em recente divagação pela comiseração. Uns que precisavam
tanto de alimento e de agasalho como de alguém que escutasse as angústias em
carne viva. Outros que pareciam ter desaprendido a comunicar com outra gente.
Alguns que, de tão doentes, não tinham sequer força para sair do ninho e recusavam
o alimento quente. Num canto fétido que era refúgio para meia dúzia de pessoas,
uma mulher velha e mirrada pegou-lhe no braço enquanto recebia a sopa quente, a
marmita com o prato do dia e um cobertor lavado. O olhar marejado era
sofrimento e gratidão. Balbuciou ao ouvido: “meu filho, não te entregues à má sorte. Aqui o sol é sempre negro.”
Deitou-se, já a madrugada se anunciava. (Depois
das entregas tivera de participar num briefing
que fazia o balanço da noite.) O cansaço era tanto e, todavia, o sono ausentara-se.
Em sintonia com a indiferença com os miseráveis. Que saiu reforçada depois da
experiência de caridade que fora desafio para saber melhor de que têmpera era
feito. Confirmara-se a sentença implacável dos mais próximos: não tinha
propensão para as maleitas que açambarcam tantas vidas despojadas nas ruas
frias e húmidas. E nem os sentidos agredidos, depois do tanto que vira,
chegavam para mudar de ideias.
Podiam todos dizer que era egoísmo. Não
interessavam os juízos alheios. Preferia a sanidade mental. Que andaria
transtornada nos dias que se seguiram. A todos os telefonemas da organização,
fez de conta que não ouviu.
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