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Tanto era o tempo para matar
que, para não se entediar com o tempo em decaimento, cada vírgula do tempo era
pretexto para a conceção criativa. Estes meses de sobra de tempo foram pródigos
em funções que deixaram de estar adiadas, em funções algumas desconhecidas, em
atividades inesperadas que de um nada vieram à superfície. Um tempo de uma
fecundidade singular.
Nos interstícios do tempo madraço, ao juntar as
mãos na empreitada de não deixar que fosse uma ceifa audaz que reduzisse a nada
o que ainda sobrava, o pensamento fervilhava. Foi quando descobriu outra
empreitada: contar as tarefas de que fora contumaz. Há quem vá às Índias com a contenda
da calibração interior. Não foi tão audacioso – e não era por não acreditar nos
predicados medicinais das Índias que houvessem; era mais modesto nas intenções
(talvez os réditos em míngua fossem o trunfo a pesar).
O lápis pendido entre os lábios ajudava à
conceção da lista que seria bússola doravante. Uns instantes depois, já
escrevinhava no guardanapo amarrotado que fora pedir à esplanada ao lado:
“caridade”. Admitia a ausência. Alguns dos mais próximos já tinham esfregado no
rosto como se de uma bolorenta censura social se tratasse: ele não tinha
sensibilidade para os miseráveis. Norma, era indeferir comiseração que entrava
nos olhos pela mendicidade de rua. Norma, era ignorar campanhas de
solidariedade montadas à porta dos supermercados. Norma, era nem abrir a porta
de casa quando do outro lado se anunciavam pedintes para ajudar crianças
mortificadas pelo cancro ou órfãos que careciam de alimento. Estava habituado a
passar pelos mendigos que se abrigavam sob pontes e viadutos ou nas soleiras de
prédios cêntricos sem sentir sobressalto.
Talvez os mais próximos que acenavam a
desaprovação estivessem ungidos pela razão. Não estava seguro (fugia da razão
quando podia). Os olhos detinham-se na palavra “caridade” reavivada pelo lápis
desgastado que já tinha passado um par de vezes, redesenhando-a a preto forte. Reavivando
a procura pela experiência que reclamava participação. Assim como assim,
recordava-se que há dias ficara com o olhar aferrolhado à oferta de comida e
bebida quente que voluntários faziam aos sem-abrigo que enganavam o frio da
noite invernal. Talvez fosse um sinal.
Guardou o papel que seria arquivo das intenções
do que jamais fora feito. O primeiro desafio estava congeminado. Cuidaria, de
seguida, de o tornar possível.
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