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Queria ser Ícaro. Bater as asas e
emproar-se nas nuvens montadas no céu azular. Planar de olhos fechados, ir para
onde o vento quisesse. Num voo asado, fugir dos vales monótonos. Abeirar-se dos
promontórios que pareciam, vistos das planícies, beijar o céu tomado por um
teto de nuvens. Queria siar de repente, desenhar uma rasante ao arvoredo calmo,
respirar o ar do campo sem avistar casario por perto, escalar as serranias
íngremes contemplando a coreografia de rochas alcantiladas num equilíbrio
instável. Porque, afinal, tudo é equilíbrio instável.
Queria ser Ícaro para saber os
segredos da paisagem. Prometeria entoar loas à traça campestre do casario
remediado, fugir dos altos edifícios que colonizaram as cidades. Haveria se
ser, num dia que fosse, o lugar-tenente da ruralidade que sempre negara. Às
coisas na sua mudança, às coisas na sua antítese, proclamaria um hino inteiro.
Não era o mudar pelo mudar. Que as mudas impróprias, aquelas que se entretecem
com a hibernação das rotinas, campeiam em lúgubres achados de onde se não avista
partida fácil. Só queria ser Ícaro para levantar os pés do chão, perder o
contacto com o chão pela duração do remígio.
Guardou o segredo
para o seu âmago. Dispensava reprovação alheia. Não queria que lhe dissessem
que a alienação não remedia maleitas. Havia noites em que se deitava sonhando
com as asas que desejava ter. Dito de outra forma: admitia que estivesse em
superação das dores da desocupação. O tempo repetia-se, banal quando não achava
serventia para ele. Os relógios eram tiranos nessas ocasiões. Apetecia
boicotá-los, da imaginação nidificando um impotente nada. Era quando se deitava
a tramar o fantástico. Era quando metia as mãos nas algibeiras dos sonhos, dos
sonhos de sentidos sentinelas, e se fazia Ícaro. Os lugares que pareciam
cárceres tinham de ser devastados da geografia mental. Empunhava as asas do
Ícaro que os sonhos tutelavam e partia em voos sem cartografia, em voos que
eram errâncias deleitosas.
Quando aterrava, eram os lençóis seu
leito. Não se consumia pela deceção, nem insultava os sonhos que fermentaram
ilusões enquanto os sentidos se anestesiavam pelo sono idílico. Aceitava o que
era. Fosse temente a deus e as preces de agradecimento ecoariam pelo quarto em
seu recolhimento.
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