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Era dia de manifestação. Diziam os
líderes sindicais, e os dos partidos que não queriam o governo, que “toda a
gente” devia ir para a rua protestar contra governação tão lesiva. Os mais
desprotegidos, os desempregados, os que viviam à míngua depois da pobreza fermentada
pelo governo. Mas também os que, entre gente com emprego mais ou menos
recompensador, estavam menos mal da vida: estes teriam de ir, ao mais que não
fosse para serem solidários com os que foram empobrecidos. Este governo –
diziam – cometia sucessivos atos de antipatriotismo. Era um governo aviltante. A
gente, a “gente toda” (enfatizavam), que viesse às avenidas e ruas das cidades
onde houvesse protestos.
Ele soube pela vizinha do terceiro
esquerdo. A mulher entradota que ainda vogava nas esperanças do Woodstock,
trajando os andrajos a preceito. Ela exclamou, em modo de intimação: “ó vizinho, desta vez vejo-te na manifestação!”
Desde que fora involuntariamente alistado na fileira dos desempregados,
dedicava todo o tempo às muitas tarefas que o tempo gasto não deixara cumprir.
Mal via televisão – e a que via excluía, assim o ditava a sanidade mental, o
grotesco desfile da atualidade. Jornais, só os das artes. Mostrou embaraço
antes de responder com palavras pendidas entre os dentes: “que manifestação?” Informado pela ativista do prédio, não disse que
sim nem que não. Não é que não soubesse que não ia fazer parte da multidão. Mas
não quis aturar a verborreia moralista da vizinha. Ainda por cima, agora ela julgava-se
possuída de mais autoridade, pois ele tinha caído no desemprego. Só que ele não
tinha mendigado comiseração.
No dia da manifestação acordou à hora
do almoço. Seguiu uma rotina indiferenciada pelo nada que tinha para fazer. Não
ligou a televisão, não fosse bolçar a primeira refeição, feita indigesta pela
dança da atualidade. A tarde soalheira mandou-o para a rua. Queria uma
esplanada para pôr leitura em dia. Foi a pé para o centro da cidade, lá havia
uma esplanada que queria rever depois da hibernação ditada pela invernia
agreste. Estranhou a agitação; para fim de semana no ocaso do inverno, a cidade
devia estar mais calma. Foi quando se lembrou da manifestação. Não se demoveu
dos planos.
Sentado na esplanada, foi notando a
diversidade de gente que tinha metido os pés ao caminho da manifestação. A
vizinha que parara no tempo do Maio de 68 também por lá passou, acompanhada de
outras desocupadas da mesma estirpe. Bruscamente, tomou-o pelo braço enquanto
ordenava “vamos lá que a manifestação
está quase a começar”. Incomodado pelo desassossego, mas comodista para não
se remover da esplanada, sacudiu o braço e, atrevido, disparou: “deixa-me em paz com a minha leitura.”
A vizinha e as amigas cercaram-no.
Percebeu que as amigas tinham sido informadas do seu desemprego. Ficou aflito
com a ideia de que a vizinha se preocupava com ele. Não queria tal incómodo. As
cinco mulheres atropelavam-se na vozearia. Não entendia o que elas diziam. Até
que uma soltou as palavras com a força dos pulmões, conseguindo discernir na
voz ralhada um juízo reprovador: “era o
que mais faltava, desempregado como estás e não ires à manifestação. Devias ter
vergonha.”
Levantou-se e não escondeu o esgar de
enfado. Antes de arremeter contra a maré de gente que ia para o lado contrário,
perguntou às mulheres que o atormentavam: “era
o que mais faltava ser obrigatória a presença na manifestação. Afinal, onde
está a liberdade que vocês apregoam?” As vaias ficaram nas suas costas à
medida que, agastado, se ia embora. Ainda conseguiu ouvir um impropério. Uma
das varinas ideológicas chamou-lhe fascista.
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