In http://s.glbimg.com/jo/g1/f/original/2010/08/15/india-independence-da_fran.jpg
O entardecer no cais. As cores desmaiavam,
emprestando ao céu as cores mágicas que encantam poetas. Caminhavam ao longo do
rio, calados, reparando nos detritos a boiar nas águas sujas. Havia crianças
que se entretinham, umas nas bicicletas que acompanhavam os progenitores,
outras sentadas na relva com bonecas, outras ainda em sonora, desenfreada correria.
Entre ele e a amiga, o passo estugado
apressava o silêncio. Ela quisera aquele sítio ao entardecer. Ao telefone, a
voz embutida na angústia, perguntara se podia arranjar um naco de tempo antes
do jantar, pois precisava de pôr ideias em ordem. Só a longa amizade pudera
interromper as mundanas tarefas a que ele se entregara na desocupação do tempo.
A simples ideia de alguém requisitar os seus conselhos tirava-lhe o sono, ele
que se julgava (sem falsa modéstia) a pessoa menos asada para emprestar
conselhos.
E como se demorava o silêncio,
substituído pela passada larga que tragava o passeio fluvial, ele perguntou a
que se devia a destemperança. Ela recusou a destemperança, que era impressão
dele. Esfregou os óculos na fralda da camisa – simbolicamente, julgou ela:
estava perturbado por não entender a gravidade na sua voz. No jogo das
metáforas que cada um outorgava do outro, talvez estivessem prisioneiros de
intenções atribuídas que não quadravam com o que de dentro deles vinha à
superfície. Depois da cortina de sombras a que silenciosamente se entregaram,
ela decantou a angústia em longo monólogo:
- Estou
sem saber o que fazer. O meu namorado deixou de aparecer, não me fala, nem
atende o telefone. Parece que desapareceu. Estou farta do emprego, tenho lá
umas desvairadas que só estão bem a causar-me mal. As conversas com os meus
pais não ultrapassam duas frases. Ando sem apetite, só me apetece ficar em
casa, e eu que nunca fui de ser amiga da cama parece que sinto uma corrente
amarrada à cama que me prende ao sono. Tenho de pegar numa folha em branco e
começar de cima a baixo, do nada. Mas para lá chegar tenho de rasgar a folha
que está repleta, a folha com caligrafia tão diversa que nem assim perde a sua
monotonia. Todavia, não sei se tenho força para rasgar folha tão preenchida, se
terá serventia alguma desfazer o tudo que foi feito – mesmo sabendo que quase
todo esse tudo me causa enfado. É uma dor pungente, cruel, aquela que me
atormenta. Às vezes estou acordada e não sei se estou a meio de um pesadelo, as
cores tingidas por vapores vulcânicos que adulteram os sentidos. Desta
encruzilhada, a maior que me apareceu a caldear o chão debaixo dos pés, tenho
medo de não saber sair.
Ele não tirou o olhar do lugar onde o
céu se fundia com o mar que parecia derreter a derradeira cintilação do sol em
seu ocaso. Com a mesma voz grave que lhe fora sussurrada ao telefone, disse: “se não estivesse à míngua de salário, oferecia-te
uma viagem à Índia. Prenda antecipada de aniversário. Estás a precisar, para
teu reencontro.”
Atónita, o olhar dirigiu-se-lhe em
jeito de reprovação: “é só o que tens
para me dizer?” O silêncio foi a antecâmara para a despedida. Não se
voltariam a ver.
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