Eram tempos estranhos. Se há uns
meses lhe dissessem que esses meses depois engrossaria o exército de
desempregados, não saberia se desdenhar da profecia (tal desdita não o podia
acossar) ou se meteria as mãos à cabeça em sinal de pânico. E, todavia,
desmentida a primeira reação (confirmou-se, não era imprescindível), não era a
segunda que o sobressaltava. Tinha como leito uma quietude também ela estranha.
Resgatara uma serenidade que não conhecia desde a altura em que não sabia do
mundo do trabalho. Alguns anos tinham passado. Havia um lastro de experiência
de onde medrava a bonança.
Deteve-se ao espelho enquanto
preparava o escanhoar. Deteve-se talvez longamente, tentando decifrar o tempo
nas dobras da idade sedimentadas no rosto. Havia rugas, um arremedo de
olheiras, uns cabelos grisalhos que irrompiam sem critério. Como se demorou na
fiscalização pessoal do próprio rosto, a certa altura parecia que o rosto que
era seu lhe não pertencia. Era como se de tanto se fitar no espelho, de tanto
dissecar as curvas e esquinas escondidas no rosto, redescobrisse um rosto
estranho.
Vincou os cotovelos na pedra fria do
lavatório, aproximando o rosto do espelho. De tanto o chegar ao espelho, este
ganhou embaciamento. Quanto mais se demorava mais o rosto parecia incógnito.
Encontrou uma pequena mancha amarelada junto a uma córnea. Descobriu o lóbulo
de uma orelha que descaía mais em comparação com o do outro lado. O nariz não
era simétrico. Havia partes da pele que não recebiam barba, já de si rala. O
cabelo comprido escondia pelugem inestética assentada no dorso das orelhas.
Recuou até onde pode. Encostou-se à
parede. Queria ver o rosto desaproximado. Podia ser que ao longe recuperasse a
identidade do rosto que naqueles demorados momentos julgava sumida. Era como se
tirasse o próprio rosto de dentro de um retrato, os braços em esforço subindo
pela moldura, forçando a ejeção do rosto para fora do retrato. Tinha de sair de
todas as fotografias. De fora, haveria de encontrar um rosto recomposto. Em
rima com a vida que, em ajuramentação da sua verdade reencontrada, era de uma
novidade singular.
A custo, os braços levitaram o rosto
para o exterior do retrato. Agora o rosto era uma novidade. Deixara de ser
desconhecido.
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