20.3.13

O rosto por fora do retrato


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Eram tempos estranhos. Se há uns meses lhe dissessem que esses meses depois engrossaria o exército de desempregados, não saberia se desdenhar da profecia (tal desdita não o podia acossar) ou se meteria as mãos à cabeça em sinal de pânico. E, todavia, desmentida a primeira reação (confirmou-se, não era imprescindível), não era a segunda que o sobressaltava. Tinha como leito uma quietude também ela estranha. Resgatara uma serenidade que não conhecia desde a altura em que não sabia do mundo do trabalho. Alguns anos tinham passado. Havia um lastro de experiência de onde medrava a bonança.

Deteve-se ao espelho enquanto preparava o escanhoar. Deteve-se talvez longamente, tentando decifrar o tempo nas dobras da idade sedimentadas no rosto. Havia rugas, um arremedo de olheiras, uns cabelos grisalhos que irrompiam sem critério. Como se demorou na fiscalização pessoal do próprio rosto, a certa altura parecia que o rosto que era seu lhe não pertencia. Era como se de tanto se fitar no espelho, de tanto dissecar as curvas e esquinas escondidas no rosto, redescobrisse um rosto estranho.

Vincou os cotovelos na pedra fria do lavatório, aproximando o rosto do espelho. De tanto o chegar ao espelho, este ganhou embaciamento. Quanto mais se demorava mais o rosto parecia incógnito. Encontrou uma pequena mancha amarelada junto a uma córnea. Descobriu o lóbulo de uma orelha que descaía mais em comparação com o do outro lado. O nariz não era simétrico. Havia partes da pele que não recebiam barba, já de si rala. O cabelo comprido escondia pelugem inestética assentada no dorso das orelhas.

Recuou até onde pode. Encostou-se à parede. Queria ver o rosto desaproximado. Podia ser que ao longe recuperasse a identidade do rosto que naqueles demorados momentos julgava sumida. Era como se tirasse o próprio rosto de dentro de um retrato, os braços em esforço subindo pela moldura, forçando a ejeção do rosto para fora do retrato. Tinha de sair de todas as fotografias. De fora, haveria de encontrar um rosto recomposto. Em rima com a vida que, em ajuramentação da sua verdade reencontrada, era de uma novidade singular.

A custo, os braços levitaram o rosto para o exterior do retrato. Agora o rosto era uma novidade. Deixara de ser desconhecido.

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