21.5.14

Mau da fita


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Quando acordava e entrava na casa de banho, a primeira coisa que fazia era espreitar o espelho. Era um narcisismo ao contrário: fazia questão de se ver feio, tão feio que metesse medo a criancinhas e velhas desamparadas. Não queria o estalão da simpatia. O mundo era mau de mais para a cortesia entre os pares da humanidade. E se meio mundo andava a enganar a outra metade, com esta, por sua vez, metendo esforços para devolver a cortesia, por que haveriam os pares da humanidade de nutrir simpatia se praticam a traição?

Dele se dizia ser raro o sorriso. O rosto carrancudo arrancava as pedras da calçada à medida que o seu passo pesado troava nas redondezas. As crianças, é um facto, mudavam de passeio aconselhadas pelos progenitores. Pois se dele se contavam histórias hediondas, proezas de que apenas se ufana quem seja sociopata, e dele se fazia constar que envergava uma voz cavernosa que destilava maldade pelos poros, ou que as lendas narravam o arsenal de pistolas e punhais que escondia debaixo da roupa escura, melhor fosse que as criancinhas se alijassem de nefasta influência.

Dele se dizia também que se divorciou da simpatia. Que professava uma boçalidade atroz. E que vivia a empreitada de amedrontar, só com o estigma da sua presença, quem com ele partilhasse uma rua da cidade. Quando precisava de ser servido (num restaurante, numa loja de roupa, num café, na sociedade recreativa local), os empregados passavam a incumbência de uns para os outros. Era como se fosse uma peste e todos tivessem medo de ser contagiados. Porque ninguém queria ser o mau da fita que viam no homem medonho.

Um dia, uma anciã foi assaltada. Dois ganapos vieram ao parque e furtivamente chegaram-se ao pé da senhora. Deram-lhe um empurrão violento e a senhora, exangue de forças mercê da vetusta idade, foi atirada ao chão. Levaram-lhe a carteira e ainda tiveram tempo de arrancar do regaço um valioso cordão de ouro. O mau da fita andava na sua demanda solitária. Ouviu os gritos aflitivos da anciã. Cortou caminho entre os arbustos e interceptou os gatunos. Mal o viram, assustaram-se. Mas, ato contínuo, terão pensado na vantagem numérica (dois contra um; e o mau da fita já entrara na meia idade). Não podiam ter tomado pior decisão. Apanharam tamanha tareia que só saíram do hospital dez dias depois.

O mau da fita já não (o) era. Depressa entronizado herói, ganhou o respeito de quem o temia. O homem nunca mais teve um sono sossegado.

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