Slint, "Washer", in http://www.youtube.com/watch?v=KHvXwX6TNfY
Já era alvorada. Depois de uma noite sem
sono. O homem não conseguira convocar o sono. Não saíam da memória as palavras
secas do médico, na noite anterior, quando fora chamado ao hospital. Para lhe
dizerem que a consorte tinha partido. Para lhe dizerem, com tamanha
desvergonha, que tinha sido erro médico – que acontece.
Já era alvorada e parecia um pesadelo.
Revivia aqueles instantes como se estivesse a vivê-los por dentro de um
pesadelo. E, contudo, se o sono não viera, era sinal de que pesadelo não era.
Como tinha sido possível? Era uma pergunta que não soube, não conseguiu, fazer
enquanto pernoitou no hospital. Esteve para ali umas horas, ao abandono, depois
do médico bolçar a grotesca insensibilidade. Atónito, com a cabeça mergulhada
sobre as mãos, como se estivesse imerso num pesadelo de que esperava acordar em
sobressalto e suor. Como tinha sido possível furtarem o farol da existência sem
pré-aviso, sem piedade no anúncio da partida, sem atenção à dor que só depois
da perplexidade começou a doer?
A manhã perdera o sentido. O
pequeno-almoço improvisado também – era como se os alimentos entrassem
mecanicamente, sem sabor e com finalidade nenhuma. Vítima do furto maior, era a
vida que desapetecia. Estava inerte, deitado sobre a cama, olhando para o teto
– como se no teto houvesse respostas às tantas interrogações que o assaltavam. Mas
já não importavam as respostas. Nem as perguntas. Ou nada, sequer nada.
Levantou-se, nu como estava. Não deu conta que uma nuvem de demência passou
sobre a sua cabeça e derramou nela a precipitação. Contaminado pela demência,
pegou no revólver que o avó, garboso general do exército, deixara em herança –
e ele que nunca dera importância às armas, achou por fim uma serventia.
Desceu a escadaria do prédio, nu como
estava, envergando a arma na mão. Subiu a avenida empunhado a pistola na
horizontal do seu rosto, ameaçando disparar contra quem passava por ele. As
pessoas fugiam em pânico, gritavam alvoroçadas com temor de serem alvejadas. O
homem, possuído por uma cegueira momentânea, não discernia quem eram as pessoas
que passavam. Não percebia que intimidava as gentes. Nunca teve intenção de
atingir quem quer que fosse. Apesar de, na sua momentânea demência, haver
demónios que eram uma pulsão assassina e que lhe sussurravam ao ouvido: “dispara, vinga-te dos que furtaram razão de
ser. São tão inocentes como tu foste, como foi a tua consorte. Vá, dispara.
Semeia a morte. Sem contemplações. É a tua vez de ser algoz. Pois ontem calhou-te
em desdita o que hoje deves devolver em dobro.”
E enquanto estas palavras o invadiam,
sentiu o troar de uma pistola. Disparada contra si. Já não teve tempo para mais
nada. Ao menos não sentiria a solidão nem o desespero da existência esgotada e
do esgotado sentido das coisas.
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