26.5.14

A missa nem a metade


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(Texto com conteúdo potencialmente chocante para quem nunca deixou de ver os fantasmas do fascismo e para os que mais tarde chegaram à patologia – correndo o risco de ser acusado de fascismo social, mas aí vai a prosa sem receios)
Um indivíduo mata duas mulheres e fere mais duas com gravidade. Anda foragido mais de um mês. Por fim, esgotado com a fuga, deixa-se apanhar. É levado a tribunal, para saber que fica à espera de julgamento em prisão preventiva (não lhe vá apetecer outra vez jogar ao gato e ao rato com as autoridades; e para não reincidir nesse ato de heroísmo que é maltratar mulheres). À porta do tribunal, um ajuntamento de seguidores do foragido. Quando o homem foi transportado do carro celular para o tribunal, os seus adeptos aplaudiram-no.
Moral da história: o que está a dar é o jogo do gato e do rato com a polícia. Quanto mais tempo o foragido conseguir despistar as autoridades, mais simpatia reúne junto da populaça. Mas fiquei atónito com a reação dos espontâneos que fizeram manifestação à porta do tribunal. É costume o povo juntar-se nas imediações dos tribunais quando estão para chegar criminosos do pior jaez, vociferando contra o criminoso, os polícias que o protegem da ira popular por impedirem a justiça popular, e contra os juízes que não sabem nada de justiça. Desta vez, foi tudo ao contrário. O povo prestou homenagem ao foragido. Não interessa que o homem traga um lastro de violência doméstica atrás de si (até usava pulseira eletrónica), não interessa que tenha friamente assassinado duas mulheres e que quase tenha conseguido fazer o mesmo a outras duas. O que conta a sério é o jogo da apanhada que o homem andou a jogar durante mais de um mês, ludibriando as autoridades. Foi como se o sexagenário fosse um fuzileiro disfarçado, escondendo-se das polícias que lhe deram caça. O povo que se tornou admirador do foragido ficou encantando com a imagem de um homem a valer mais do que dezenas de agentes da autoridade que partiram em sua demanda. Como é sabido, o povo congratula-se com o triunfo dos fracos perante a capitulação dos fortes. Como o enredo findou com a vitória dos fortes, o povo comoveu-se com a decadência do fraco.
O episódio também desatou em mim alguma comoção. Afinal de contas, o povo tem uma certa queda para a anarquia. Senão, as proezas do foragido não tinham sido aplaudidas. Falta saber se o povaréu também apoiou as malfeitorias cometidas sobre as mulheres; porventura é daquele estalão que considera que as mulheres estavam a pedi-las, que desafiar a honra de um homem é um ultraje que justifica o tresloucado ato do assassínio. Para este povo ilustre, a demência, com certeza temporária, é de somenos importância. O que conta é o jogo do gato e do rato, a zombaria das autoridades, a sua desautorização, a honra marialva.
Se calhar, o povo devia ser educado nas virtudes da anarquia, pois está demonstrado que os pergaminhos da democracia não lhe são convincentes.

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