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(Texto com conteúdo potencialmente chocante
para quem nunca deixou de ver os fantasmas do fascismo e para os que mais tarde
chegaram à patologia – correndo o risco de ser acusado de fascismo social, mas
aí vai a prosa sem receios)
Um indivíduo
mata duas mulheres e fere mais duas com gravidade. Anda foragido mais de um mês.
Por fim, esgotado com a fuga, deixa-se apanhar. É levado a tribunal, para saber
que fica à espera de julgamento em prisão preventiva (não lhe vá apetecer outra
vez jogar ao gato e ao rato com as autoridades; e para não reincidir nesse ato
de heroísmo que é maltratar mulheres). À porta do tribunal, um ajuntamento de
seguidores do foragido. Quando o homem foi transportado do carro celular para o
tribunal, os seus adeptos aplaudiram-no.
Moral
da história: o que está a dar é o jogo do gato e do rato com a polícia. Quanto
mais tempo o foragido conseguir despistar as autoridades, mais simpatia reúne
junto da populaça. Mas fiquei atónito com a reação dos espontâneos que fizeram
manifestação à porta do tribunal. É costume o povo juntar-se nas imediações dos
tribunais quando estão para chegar criminosos do pior jaez, vociferando contra
o criminoso, os polícias que o protegem da ira popular por impedirem a justiça
popular, e contra os juízes que não sabem nada de justiça. Desta vez, foi tudo
ao contrário. O povo prestou homenagem ao foragido. Não interessa que o homem traga
um lastro de violência doméstica atrás de si (até usava pulseira eletrónica), não
interessa que tenha friamente assassinado duas mulheres e que quase tenha
conseguido fazer o mesmo a outras duas. O que conta a sério é o jogo da
apanhada que o homem andou a jogar durante mais de um mês, ludibriando as
autoridades. Foi como se o sexagenário fosse um fuzileiro disfarçado,
escondendo-se das polícias que lhe deram caça. O povo que se tornou admirador
do foragido ficou encantando com a imagem de um homem a valer mais do que
dezenas de agentes da autoridade que partiram em sua demanda. Como é sabido, o
povo congratula-se com o triunfo dos fracos perante a capitulação dos fortes.
Como o enredo findou com a vitória dos fortes, o povo comoveu-se com a decadência
do fraco.
O episódio
também desatou em mim alguma comoção. Afinal de contas, o povo tem uma certa
queda para a anarquia. Senão, as proezas do foragido não tinham sido aplaudidas.
Falta saber se o povaréu também apoiou as malfeitorias cometidas sobre as
mulheres; porventura é daquele estalão que considera que as mulheres estavam a
pedi-las, que desafiar a honra de um homem é um ultraje que justifica o
tresloucado ato do assassínio. Para este povo ilustre, a demência, com certeza
temporária, é de somenos importância. O que conta é o jogo do gato e do rato, a
zombaria das autoridades, a sua desautorização, a honra marialva.
Se
calhar, o povo devia ser educado nas virtudes da anarquia, pois está demonstrado
que os pergaminhos da democracia não lhe são convincentes.
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