2.5.16

Floresta (13)

New Order, “Thieves Like Us” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=k-j30HJ1HIk
Afogueado, à saída da igreja, estugou o passo para se afastar e respirar melhor. Já não sabia dos quadrantes, e padecia de esperanças por encontrar um mirante que destapasse as sombras todas. Tinha sido um feito, entrar na igreja e conversar com um padre em jeito de confissão. Mas só isso, um feito; não tinha significado, talvez até só um desafio para dentro de si, para desembainhar as algemas que o prendiam a certas prisões mentais. A conversa com o padre não produzira resultados. Percebeu o custo da provocação alinhavada contra os seus esteios: saíra da igreja abraseado, incomodado com alguma coisa. Porventura, por ter traído os esteios em que se considerava fundeado ao procurar um ombro que o escutasse dentro de uma igreja. Os que viessem pensar que veio em socorro de um deus e dos preceitos da sua igreja por se encontrar em apertos, que se desenganassem.
Não demorou a voltar à agitação interior. Ainda estava sentado no banco do jardim no adro da igreja quando notou um vulto que voejava furiosamente, como se fosse um furacão a entrar em terra fugindo do mar. Todavia, as demais pessoas continuavam serenas na deambulação pela rua; não teve dúvida, era o vulto que voltara para o confrontar com as suas tergiversações, com o desafio à sua autoridade. Levantou-se: não queria estar em posição de subjugação quando o vulto o importunasse. O vulto que viesse, que ele, dantes homem temeroso, mostraria uma coragem que nem ele sabia ter fundamento. O vulto cercou-o, em voo circular, durante algum tempo. Devia ser para o intimidar. O homem condenado não se moveu. Apenas seguiu com o olhar as movimentações do vulto, no seu voo iracundo. Ficou à espera que o vulto o interpelasse.
- Faz-me um ponto da situação. Trataste do plano para a redenção?
- Ainda não – respondeu o homem, hesitante e sentindo a garganta a secar.
- Não achas que é tempo de cuidares do contratado entre nós?
- Devo lembrar que não disse em que prazo devia arrematar a minha expiação.
- Nem tal era preciso. Em tratando-se de julgamento que pôs à evidência tamanho rol de delitos, julgava que era bastante para teres a redenção como assunto urgente.
- Tenho andado a pensar no assunto...tenho algumas dúvidas...ainda não sei como dar corpo à empreitada...
- Terei a impressão que estás a ocultar uma parcela, e grande, da verdade?
- Por que tem o vulto semelhante suspeita?
- Convém não esquecer que sou a imagem exterior da tua consciência. Convém não esquecer que, na minha desmaterialização, vogo por dentro de ti. Se quiseres, e por palavras mais simples, sei quando mentes.
(O homem condenado decidiu testar as palavras do vulto, levá-las ao limite para se certificar se a intimidação tinha fundamento ou se não passava de uma ameaça torpe e inane.)
- Venha de lá novo rol de acusações.
- Devo-o fazer? Devo avivar-te a memória? Os compromissos que assumiste ontem, as dúvidas que te tomaram de assalto e cimentaram o arrependimento desses compromissos, o ataque ao outro homem à saída da floresta, as conversas interiores através das quais te procuras convencer da nulidade do julgamento de ontem?
- Não posso esconder nada. Já percebi que, diante de si, tenho de fazer jogo limpo.
- E que consequência retiras?
- Que não me revejo no que, no papel de minha consciência, me tenta impor. Eu não sou assim, como uma presumível consciência faria gosto em que eu fosse. Nem procuro redenção dos meus males – que reconheço – para tirar partido de um decesso em sossego.
- Estás enganado. Não vim à tua presença para te obrigar a repensar o que deixaste para trás, nem para te arrependeres, e com punições adjacentes, dos delitos que dizes reconhecer.
- Qual é o desiderato, é capaz de me informar?
- Eu não quero a tua mudança. Já percebi, por todos estes anos que levo embebido nas tuas entranhas, que é uma impossibilidade. Quero que admitas a culpa e decidas que punição deves suportar. Depois, podes continuar a tresmalhar, como sempre fizeste.
- Tremenda dificuldade, o plano da minha redenção.
- Tens dificuldade, ou simplesmente evitas pensar nesse plano?
- A morte do outro homem, daquele que ataquei com um tronco, também entra no rol de acusações? Também devo incluir esse delito na exigência de redenção? – perguntou o homem condenado, desconversando da pergunta formulada pelo vulto.
- Essa pergunta é inútil. Sabes a resposta.
- Diga-me: no caso dos delitos que extravasam a punição da consciência, daqueles que implicam a justiça dos homens, também devo temer o julgamento de um tribunal em cima do que me é imposto pelo vulto?
- Cada coisa a seu tempo e no seu devido lugar.
- A certa altura, ainda julguei que a punição decretada pela consciência substituísse a justiça dos homens.
- Tenho a dizer, e digo-o com frontalidade, que deves esperar que a polícia te dê caça.
- Isso é informação que eu desconheço?
- Não. É o senso comum.
(Instalou-se o silêncio. O homem condenado estava em vias de ser, no fim de contas, sujeito de dupla condenação. Prostrado, deixou cair o corpo na relva, sentando-se. Arqueou a cabeça sobre os joelhos. O vulto continuava a adejar sobre ele, à espera de reação, à espera que o homem confessasse outra vez os delitos e congeminasse a sua redenção. O homem não queria sucumbir aos planos do vulto, da sua consciência.
Preparou uma reação de contingência, espontânea. Não podia pensar muito tempo, não fosse o vulto antecipar-se ao seu pensamento. Tirou a pistola que trazia guardada num bolso do casaco e disparou na direção do vulto. Não sabia se daria resultado. Não custava tentar. Certo é que o vulto desaparecera do firmamento. Ficou alivado. Conseguira matar o vulto. Conseguira matar, no espaço de poucas horas, duas personificações da sua consciência. Agora julgava-se livre para não ter de lutar contra o seu pensamento.)

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