20.5.16

Por acaso

Interpol, “Lights”, in https://www.youtube.com/watch?v=tSx2OSuEzDI
Por acaso: apeteceu ir à praia despoluir os negros pensamentos que cobriam o horizonte. Encontrou uma garrafa vomitada pelo mar, jazendo na areia ainda molhada à espera da maré-alta. Se os negros pensamentos não tivessem dado à costa, não tinha metido caminho à praia. E a garrafa tinha sido devolvida ao mar quando a maré-alta voltasse a beijar a areia, submergindo-a.
Por acaso: apeteceu comprar um livro de que lera sinopse elogiosa num suplemento cultural. Dirigia-se à livraria mais próxima, mas mudou de ideias. Foi a outra livraria, que era mais longe, mais pródiga em catálogo. Demorou-se. Deixou-se ficar pelos sofás onde os clientes podiam ler livros extraídos às estantes, sem serem acusados de crime contra o capitalismo. À sua frente, uma mulher nos mesmos preparos. Uma mulher atraente, que começou a desviar os olhos do livro que havia sido pedido emprestado de uma estante. A páginas tantas, os livros jaziam em cima do sofá e eles falavam exuberantemente. Se a vontade não tivesse mudado e não tivesse aferido o caminho para aquela livraria, hoje não seria casado com aquela mulher.
Por acaso: uma escolha aleatória de palavras. Apenas as palavras iniciais, que depois o texto haveria de tomar o seu rumo, como se tivesse vontade própria. O texto ao acaso. Quando terminou a função, admitiu que o texto aportou a um cais inesperado. Mas admitiu: quando iniciou a função, não havia rumo nenhum. Não fossem as palavras esboçadas no começo, não haveria texto nenhum a entoar um pensamento difuso.
Por acaso: numa cidade desconhecida, meteu por uma rua não popularizada em roteiros turísticos. Continuou por ruas esconsas, algumas nem vinham no mapa. O alfabeto cirílico na toponímia não ajudava à orientação, mas isso também não importava. Parou num recanto deslumbrante, protegido por uma cerca, onde um pequeno jardim vivia resguardado. As mãos empurraram a cerca; talvez fosse possível entrar nos domínios do jardim deslumbrante. Assim foi. Um velho cansado veio ao seu caminho. Sinalizou, em linguagem gestual, as suas intenções pacíficas. Travaram conhecimento – o velho falava inglês, dos tempos em que andara embarcadiço. Confessou que uma vez, entediado e com saudades dos seus, lançou uma garrafa de brandy borda fora, com uma mensagem no interior. Estudadas as marés, podia ser a garrafa encontrada no areal que esperava pela maré-alta. Não fosse afastar-se das convenções turísticas, não teria convidado o velho pescador para resgatar a garrafa que dera à costa.

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