Interpol, “Lights”, in https://www.youtube.com/watch?v=tSx2OSuEzDI
Por acaso: apeteceu ir à praia despoluir os negros
pensamentos que cobriam o horizonte. Encontrou uma garrafa vomitada pelo mar,
jazendo na areia ainda molhada à espera da maré-alta. Se os negros pensamentos
não tivessem dado à costa, não tinha metido caminho à praia. E a garrafa tinha
sido devolvida ao mar quando a maré-alta voltasse a beijar a areia,
submergindo-a.
Por acaso: apeteceu comprar um livro de que lera sinopse
elogiosa num suplemento cultural. Dirigia-se à livraria mais próxima, mas mudou
de ideias. Foi a outra livraria, que era mais longe, mais pródiga em catálogo. Demorou-se.
Deixou-se ficar pelos sofás onde os clientes podiam ler livros extraídos às
estantes, sem serem acusados de crime contra o capitalismo. À sua frente, uma
mulher nos mesmos preparos. Uma mulher atraente, que começou a desviar os olhos
do livro que havia sido pedido emprestado de uma estante. A páginas tantas, os
livros jaziam em cima do sofá e eles falavam exuberantemente. Se a vontade não
tivesse mudado e não tivesse aferido o caminho para aquela livraria, hoje não
seria casado com aquela mulher.
Por acaso: uma escolha aleatória de palavras. Apenas as
palavras iniciais, que depois o texto haveria de tomar o seu rumo, como se
tivesse vontade própria. O texto ao acaso. Quando terminou a função, admitiu
que o texto aportou a um cais inesperado. Mas admitiu: quando iniciou a função,
não havia rumo nenhum. Não fossem as palavras esboçadas no começo, não haveria
texto nenhum a entoar um pensamento difuso.
Por acaso: numa cidade desconhecida, meteu por uma rua não
popularizada em roteiros turísticos. Continuou por ruas esconsas, algumas nem
vinham no mapa. O alfabeto cirílico na toponímia não ajudava à orientação, mas
isso também não importava. Parou num recanto deslumbrante, protegido por uma
cerca, onde um pequeno jardim vivia resguardado. As mãos empurraram a cerca;
talvez fosse possível entrar nos domínios do jardim deslumbrante. Assim foi. Um
velho cansado veio ao seu caminho. Sinalizou, em linguagem gestual, as suas
intenções pacíficas. Travaram conhecimento – o velho falava inglês, dos tempos
em que andara embarcadiço. Confessou que uma vez, entediado e com saudades dos
seus, lançou uma garrafa de brandy
borda fora, com uma mensagem no interior. Estudadas as marés, podia ser a
garrafa encontrada no areal que esperava pela maré-alta. Não fosse afastar-se
das convenções turísticas, não teria convidado o velho pescador para resgatar a
garrafa que dera à costa.
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