Iggy Pop, “Gardenia” (live),
in https://www.youtube.com/watch?v=79LnaLLLwnY
Já não sabia há quanto tempo sentia o ar límpido e o céu
desanuviado. Reformulou: tinha a certeza que nunca sentiu tamanho alívio. Era lugar-comum
dizer que o corpo não lhe pesava nada. Porventura, o descargo das consciências
avulsas que o tinham interpelado ajudava. Talvez mais importante era a ideia de
que apenas o tempo por haver era abraçado nos pensamentos. Às vezes, lá
assomavam à superfície as interrogações que fermentavam dúvidas, as dúvidas
pungentes: seria a predisposição para o futuro apenas um ardil para esquecer o
passado de que vinha acusado? Não acreditava que a pergunta tivesse vencimento.
O problema não era fazer de conta que não fora autor de todos aqueles delitos
que correspondiam ao laudo de acusação; reconhecia a paternidade dos factos e,
repetiu-o à exaustão, para que todas as reincarnações de consciência pudessem
tomar conhecimento, não se arrependia de nada do que fora feito.
Outra interrogação turvou o horizonte: a predisposição
para o futuro, no que ela tinha de vontade para mudar o que fora dantes, não
podia ser entendida como um arrependimento por interposta ação, sem que a
palavra fosse usada? Primeiro, se a ambição era a de esculpir um porvir
diferente, sem a mácula de antanho, é porque a vontade de mudar estava
sinalizada. E a vontade de mudar teria o condão de revelar não apenas uma
vontade de mudar, como se ela fosse endógena, mas que a vontade vinha agitada
pelo reconhecimento dos males praticados em tempo pretérito. Segundo, o
arrependimento, a simples evocação da palavra, causava-lhe náuseas. Porventura
afrontando o imenso orgulho em que se considerava imerso. Podia haver arrependimento,
desde que a palavra “arrependimento” não fosse exortada.
Tomou uma resolução: de cada vez que uma torrente de
interrogações viesse à tona, atormentando o pensamento, teria de terçar as melhores
armas para oprimir tais pungentes interrogações. Teria de desviar o pensamento.
Só contava a paisagem que prometera como lugar de visitação futura. Não podia
rescindir com o tempo aliviado em que se sentia. Não podia ser o próprio fautor
das suas angústias. Os tempos recentes tinham sido pródigos em sobressaltos, em
noites com o sono invadido pela insónia, em agueiros cheios de águas
tumultuosas.
A serenidade podia estar sob sequestro. Um dia, ao
almoço, quando amesendava com o cunhado que casara com a irmã do meio da sua
consorte, passou no noticiário, na televisão sensacionalista que estava
sintonizada, uma notícia que o deixou inquieto. Dizia a notícia que a polícia
estava a investigar um crime cometido na entrada sul da floresta. Um homem fora
encontrado esvaído em sangue, com um golpe profundo acima da nuca. O corpo não
tinha identificação. Esperava-se que depois da autópsia fosse possível
descobrir o seu nome. Dizia a notícia, parafraseando o porta-voz da polícia: as
investigações estavam adiantadas e a polícia tinha pistas sólidas sobre o autor
do crime. O jornalista queria pormenores. O porta-voz recusou, escondendo-se no
segredo da investigação criminal. Sobressaltado pelo que acabara de ouvir, não
conseguiu esconder o estado que o apoquentava. O cunhado perguntou o que se
passava. Respondeu que estava tudo bem, sem conseguir disfarçar a angústia que
incinerava as veias. E nem os visíveis suores frios que desciam da testa pelo
rosto foram suficientes para capitular perante a insistência do cunhado (que
julgou que ele estava a passar por uma súbita indisposição).
Os dias que se seguiram foram de regresso ao sobressalto
permanente. Era estranho – pensou consigo mesmo – como não dera importância ao
episódio da morte do homem que se dizia mandatado pelo vulto para falar em nome
da sua consciência. Quando irrompiam as memórias da noite assustadora na
floresta, inclinava-se para a ideia de que se tratara apenas de um pesadelo. Pesadelo
com contornos tão nítidos que a ilusão tinha fronteiras delgadas a separá-la da
realidade. Mas, ainda assim, um pesadelo. Mais a mais – interiorizava –, mesmo que
não tivesse sido um pesadelo e tudo aquilo se tivesse passado, a morte daquele
homem às suas mãos não devia causar comoção. Nem devia ser crime. Ele podia lá
ser que um homem de carne e osso fosse a transfiguração de um vulto por sua vez
personificação da sua (diziam-lhe) atormentada consciência? Um homem de carne e
osso (e aqui nem interessava saber se era verídico que representasse o vulto) não
podia corporizar a consciência de outra pessoa. Aquele homem não podia ser de
carne e osso. Estava certo que a sua morte não deixara vestígios de um cadáver.
E que, pouco depois de ter consumado o assassínio da improvável personificação da
sua consciência, não sobravam vestígios do acontecimento no lugar onde o
acontecimento tivera lugar.
As suposições estavam erradas. O corpo voltava a ser incomodado
por um peso insuportável. As cefaleias constantes tomaram lugar em palco. Ele sentia-se
acossado. Já não sabia se não devia sair à rua, não fosse um polícia à paisana
dar-lhe caça. Mas talvez não fosse boa ideia ficar em casa. Se a polícia tinha
pistas sólidas para apurar o homicídio na floresta, depressa dariam com a sua
morada. A prioridade era a congeminação de um plano de fuga. Com muita pena
sua, tinha de sepultar os tempos de ar aliviado e já não podia consagrar à família
e aos amigos, como projetara, todo o seu eu.
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