Charles Bradley, “Changes”,
in https://www.youtube.com/watch?v=xi49yirJiEA
Estes eram os termos
da equação: por mais que desse o seu melhor, por mais que fosse ao mais fundo
de si arregimentar o convencimento de que não podia bolçar arrependimentos por
acusações que vinham de fora de si, por mais que fizesse um tremendo esforço
para não dar importância ao que fora passado, os dias recentes cindiam-se na angústia
de ele não conseguir traduzir as intenções. Era como se sentisse traído por si
mesmo, dado o abismo entre as intenções que ajuramentava e os acontecimentos
que vinham a palco com autonomia da sua vontade. Por mais que quisesse esquecer
que um passado acontecera, por mais que só atirasse o olhar para o tempo
vindouro, quando vinha a prova dos nove soçobrava no ardil de uma vontade que se
impunha de fora para dentro.
Ele fazia juras para
o porvir. Em parte, julgava ser critério pagão para asfixiar a vontade exterior
que comandava as ações. Era como se, perante os braços sitiados por uma vontade
que não era sua, jogasse ao calhas no tabuleiro da superstição. Podia ser que
extinguisse o peso do passado – ao que parecia, tenebroso – com planos
pormenorizados para um tempo vindouro mais radioso exemplar (na báscula onde se
pesavam os exemplares aos olhos dos tutores da perfeição social).
Prometia-se muita
coisa. Haveria de fazer uma surpresa à consorte. Sem pré-aviso, haveria de a
levar num fim de semana para fora da cidade, para um lugar ermo, um turismo
rural onde o romantismo pudesse reavivar. Haveria de a tratar com decência, sem
laivos de marialva boçalidade, sem a jogar nas mãos como um instrumento para os
seus desejos, sem a desprezar enquanto se permitia desvarios carnais em lugares
esconsos da cidade. Haveria de se preocupar com a sua saúde, sem ser preciso
(como era habitual) ouvir os seus queixumes depois de uma visita ao médico. Haveria
de lhe oferecer flores, o que já não acontecia desde a altura em que ainda não eram
casados. Haveria, tão simplesmente, de lhe dizer, enquanto o olhar ocupava a
profundidade dos seus olhos, que a amava.
Haveria de encontrar
espaço para se convencer de tudo isto. Porque, afinal de contas, era a mulher
da sua vida. A mãe dos seus filhos. Mesmo que ouvisse outros homens, em
conversas de mesa de café onde se desarvora a boçalidade marialva, a desvalorizarem
os preceitos, concluindo que ser “a mulher de uma vida inteira”, ou “a mãe dos
seus filhos” era uma tautologia que reduzia a nada o sentimento. Estava
convencido que as convenções, até as convenções próprias da marialva
boçalidade, deviam ser vertidas no lixo.
Prometeu que haveria de
voltar ao convívio de amigos de quem se afastara. Dos amigos de longa data que,
a certa altura, destinou ao esquecimento. Dos amigos que tinham a franqueza de
lhe dizer as coisas desagradáveis que correspondiam ao julgamento dos seus
atos. Haveria de marcar um almoço com eles, ou com cada um deles, à vez.
Haveria de os convencer a não falarem do passado, nem que a repristinação do tempo
gasto fosse sinónimo de episódios que interessava recordar pela recompensa
emocional que deles se resgatava – as tais memórias conjuntas que cimentam uma
cumplicidade amiga. Haveria de os convencer a apenas falarem dos preparos em
que se encontravam – as coisas banais: a família, os filhos, talvez já os
netos, o trabalho, os planos para a reforma que não tardava, a música, os
livros, as viagens, os prazeres descobertos e os prazeres redescobertos; mas apenas
as coisas banais, pois a amizade não pode tratar das transcendências que convocam
a filosofia. Haveria, até, de não se incomodar se um amigo quisesse voltar lá
atrás no tempo para o julgar por um qualquer acontecimento de gravidade maior.
Haveria de ter a persuasão para desconversar, chegasse a conversa a estes
preparos, sem sequer se incomodar.
E prometeu, acima de
tudo, que o olhar só se podia embeber no tempo por nascer, pois seria dele que
podia fruir, com inteireza e sem sobressaltos, uma grandeza que queria a rimar
com esse tempo. Só interessava remediar o que já percebera terem sido os seus
descaminhos prévios. E percebeu: que tantas promessas, tantos planos para
corrigir os contratempos de que fora autor no tempo pretérito, podiam ser uma
imposição discreta, de fora para dentro, quem sabe se mercê de uma consciência
silenciosa, para a sua redenção.
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