18.5.16

A desordem dos espelhos

Moderat, “Last Time”, in https://www.youtube.com/watch?v=lxf05bSC17E
Um gato furtivo irrompe entre os arbustos. Persegue uma presa, enquanto as flores que vicejam com o fulgor da primavera olham, atentas e inertes, a caçada. O gato negro confunde-se com a vegetação compacta, perde-se de vista. Sobra a alçada da imaginação, que pode esboçar tantos palcos quanto o fermento da criatividade alcança. Pode dar caução a muitos corolários da história. Pode o gato ter apanhado a presa. Pode o gato ter-se perdido no emaranhado de arbustos que se entretecem nos subterrâneos da vegetação. Pode o gato ter tropeçado numa armadilha. Pode o gato ter fracassado na função e ser obrigado a procurar alimento algures. Ou pode apenas ser o produto de um sonho. Os espelhos à frente dos olhos ditam o veredicto.
Um espelho sozinho devolve uma imagem nítida. Não causa dúvidas, a imagem devolvida. Mas se esbarramos numa cortina de espelhos, com as imagens de uns a refratarem-se nos outros, numa miríade de imagens que se multiplica exponencialmente, ficamos sem saber que imagens são processadas pelo pensamento. No feixe de imagens distorcidas, podemos ficar sem saber onde estamos. As imagens sobrepostas trespassam a lucidez do olhar. Perante os fragmentos de imagens que se interrompem, o olhar coalesce num sobressalto. E sente como se estivesse aprisionado num labirinto apertado, sem mapa e sem encontrar a porta da saída, o corpo desorientado aos encontrões contra as paredes estreitas do labirinto.
A cortina de espelhos açambarca um pesar, talvez. Incendeia os palcos múltiplos onde o pensamento é convidado a habitar, de preferência numa omnipresença impossível. O pensamento pode responder, num ato de ousadia, dividindo-se pelos múltiplos palcos que correspondem ao apelo da cortina de espelhos. Um pé aqui, sem demora, para logo saltar para outro palco. Pois as imagens sobrepostas devolvidas pela cortina de espelhos oferecem, todas elas, tributos que não podem ser desprezados.
Não pode ser, a omnipresença. Mas pode ambicionar algo de parecido, como se fosse um nomadismo de lugares à medida da dispersão e do caos das imagens distorcidas que estão no banho-maria da cortina de espelhos. Sem interessar o devir do gato furtivo, depois de se sumir pela ramagem densa atrás da caça. Pois na desordem da cortina de espelhos, sopesam as interrogações fruídas, sem cuidar das respostas como seu necessário contraponto.

Sem comentários: