The Sisters of Mercy, “Marian”,
in https://www.youtube.com/watch?v=yVPx4zalkiM
Uma frase dita pela filha ficara a fermentar no
pensamento. Foi quando ela, incrédula com a vontade do pai em mudar a forma
como se relacionavam, com o fito de não serem distantes e quase estranhos como dantes,
perguntou se a súbita vontade de mudar os azimutes não correspondia a uma
redenção por sua vez explicada por uma doença terminal de que o pai tomara
conhecimento. Ele replicou, intempestivamente, que tinha uma saúde pujante, que
a sua vontade de ser mais próximo dos filhos não se devia a nenhum
arrependimento forjado na ponta do revólver de uma doença sem remédio. Mas à
pergunta da filha seguiu-se uma cisma: poderia dar-se a circunstância de estar
doente e, mesmo não sabendo por que baias se cerzia a doença, que a vontade de
corrigir maus comandos dos tempos idos se devesse a uma redenção antes do
tempo, caucionada por uma doença sem remédio que ele ainda não sabia existir?
Marcou consulta no médico. O médico não avançou diagnóstico.
Mandou fazer análises e outros exames e depois que voltasse ao consultório. Assim
fez, estranhamente obediente. (De outras vezes, perante o ar grave do médico ao
prescrever análises e exames, sempre fora insubordinado). Fez os exames e as análises
com uma urgência singular. Não que estivesse com medo de ficar refém de uma
doença sem cura – e ficou admirado que o pavor da doença não fosse acendalha do
medo, logo nele, que hospedava tantos temores, alguns por assuntos picuinhas. Era
só para confirmar a suspeita da filha. Só para confirmar se a sua mudança era
paradoxal, ou se era uma mudança que vinha das entranhas, comandada por uma
força invisível que habitava dentro dele e não conseguia domar. Estar ou não
estar doente fazia toda a diferença. Repetia, para se convencer do que dizia em
surdina: não era por causa da doença, mas para entender se a doença fora a
força motriz da mudança que até ele julgava improcedente.
Voltou ao médico. Depois de uns vagarosos minutos de
apreciação dos resultados das análises e dos outros exames, o médico, impassível,
comunicou que os exames não acusaram nada. Continuava com uma saúde que fazia
inveja a homens mais novos. Incrédulo, perguntou ao médico se não havia sinais
que pudessem motivar desconfiança sobre uma doença remota, de tal forma que o médico
o aconselhasse a fazer exames mais profundos, ou outros exames que pudessem
descobrir o que os exames já feitos não tinham sido capazes de detetar. O médico
levantou a cabeça na direção dos olhos do homem, pôs cara de caso e disparou,
rudemente: “o senhor está à espera que eu
lhe invente uma doença?”
Confirmava-se: não era por ação da doença que beijava os
contrafortes da bondade, da harmonia com os mais próximos de si, da redenção
cuja origem não sabia encontrar nem pôr freio. Se não era uma mudança
determinada pela convocatória da doença, só podia ter origem em si. Sem fatores
exteriores a comandá-la. Nos momentos de lucidez – e tinha por momentos de
lucidez aqueles em que não era apoderado por um eu escondido que tratava de
compor os danos de uma vida inteira – procurava perceber o que determinava a
pulsão para o contrário do que sempre fizera, do que sempre fora. É que se
houvesse arrependimento a esvoaçar sobre ele, o arrependimento podia ser a
etapa prévia da mudança – a mudança ditada pelo fervor do arrependimento. Mas ele
continuava, nestes momentos a que teimava em chamar lúcidos, de pés firmes na
autoria de todos os atos que o vulto seu julgador arrolou como delitos expostos
à punição. Nos momentos de lucidez, os filhos eram apenas matéria orgânica, o produto
do sexo com a consorte. Os filhos é que tinham de agradecer a existência aos
progenitores, à interação orgânica que umas tardes de sexo causaram. Não fosse
isso, eles nem existiam.
Fora dos momentos de lucidez, gravitava no seu oposto. Era
como se o eu que conhecia entrasse em hibernação, saindo de si para a posição
de espetador – e de um estupefacto espetador – dos atos de bondade, da contrição
pungente, da demanda por uma redenção própria de quem parecesse estar a dizer
adeus à existência, não querendo carregar para a morte os pouco recomendáveis
atos de antanho.
Demorou a mentalizar-se da dicotomia que tomara conta
dele. A certa altura – e já depois de uma conversa com o filho parecida com a
que tivera com a filha – já não arrumava em categorias estanques o que ele
dizia serem “momentos de lucidez” (fazendo-os corresponder ao que sempre
conhecera de si) e os “momentos de desatino” (por inerência de um eu que
julgara não ser ele, em que tudo era feito por antinomia ao que nele sabia ser
habitual).
Se calhar, a mudança em fermentação era mesmo sinal de envelhecimento.
Correspondia a uma das possíveis explicações para as mudanças estruturais que
se operam em muitas pessoas. Velhas e cansadas, abdicam de serem o que eram. Dizem
os teóricos dos meandros das almas, a mudança tanto vale para quem faz a
travessia do mal para o bem, como vale em sentido contrário. Ele tinha um
problema inicial com esta teoria: não admitia que o “bem” e o “mal” fossem
objetivados. Descontando não se rever neste pressuposto, aceitava o resto da
teoria. As pessoas, quando caminham para a senescência, amaciam. Ficam predispostas
a serem diferentes do que sempre foram no transato.
Julgava ter, enfim, percebido os estados de alma voláteis
que tingiam os dias com cores diferentes.
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