Ty Segall and the Muggers, “Candy
Sam” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=vqkqsS2uxis
Falava-se de pequenos prazeres. Daqueles que enchem as
medidas. Um paradoxo cheio de sentido: são as pequenas coisas, que por pequenas
serem estão cheias de preciosidade, que fazem uma bolsa de ouro. É como ensinam
os vilipendiados economistas: uma questão de escassez de recursos. Os que
rareiam conseguem figurar no rol dos mais valiosos. O que os economistas não
aprendem é a medida da subjetividade: as pessoas são diferentes no
comportamento perante as coisas valiosas. São esses comportamentos que
determinam, para cada pessoa, o valor de uma coisa.
Ele dizia que o arroz doce estava entre as coisas de
maior riqueza. Ela perguntou se comia arroz doce muitas vezes. Ele não sabia
quantas eram muitas vezes e pediu ajuda no esclarecimento do assunto
quantitativo. Ela devolveu a incumbência: ele é que sabia quantas vezes podiam
figurar como muitas. Não era interpelação despicienda: mal fosse quantificado o
limiar das muitas vezes, assim se saberia se o arroz doce preenchia as condições
da escassez para ser reconhecido como iguaria valiosa. Puseram-se de acordo:
ele admitiu que vezes suficientes, na ingestão de arroz doce, seriam três, no máximo
quatro, em cada calendário anual. Ela aceitou a formulação – parecia-lhe uma
razoabilidade.
Ele começou a descrever a constelação de sentidos que o
invadia de cada vez que metia à boca uma colherada de arroz doce. Era um prazer
daqueles em que os olhos espontaneamente se fecham, como se o seu encerramento
ajudasse a fruir os paladares que concorriam nas papilas gustativas. A textura
tinha de obedecer a certos predicados: não podia ser leitosa, nem podia estar a
preceito de serem cortadas talhadas inteiras. A cozedura não podia passar do
período estabelecido nos tratados pantagruélicos; ovos muito passados sobrepor-se-iam
aos demais sabores (a menos que se abusasse na dose de canela; só que, então,
ficaria a predominar o sabor deste condimento sobre o resto e já nem teria
propriedade falar-se de arroz doce, mas de uma mistela qualquer com aroma a
canela). O açúcar tinha de estar na dose certa, para não emprestar um adocicado
extremo (que ditaria o rápido enjoamento) nem para retirar carácter à iguaria (por
carência de açúcar).
Ela perguntou se já não pusera a hipótese de aumentar a
dose anual de ingestão de arroz doce, tantos eram os deleites de cada vez que um
prato da iguaria, com colher a preceito, parava à sua frente. Ele disse que não.
Que gostava de coisas assim, das que hasteiam prazeres que convocam os sentidos
prolíficos, sem passarem da medida certa. E antes que ela voltasse a insistir
com nova interrogação (“o que tens por ‘medida
certa’?”), ele antecipou-se e pôs sentença na conversa: “a medida certa é a que tiveres por ajuizada.
Varia de pessoa para pessoa. E de instante para instante”.
Sem demoras, virou o rosto na direção da mesa da
cozinha, onde um prato de arroz doce ainda fumegava, acabado de sair da confeção:
“agora vou-me ao arroz doce, se me dás
licença.” E fechou-se para o mundo durante as colheradas que demorou a exaurir
o prato de arroz doce.
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