30.5.16

Arroz doce

Ty Segall and the Muggers, “Candy Sam” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=vqkqsS2uxis
Falava-se de pequenos prazeres. Daqueles que enchem as medidas. Um paradoxo cheio de sentido: são as pequenas coisas, que por pequenas serem estão cheias de preciosidade, que fazem uma bolsa de ouro. É como ensinam os vilipendiados economistas: uma questão de escassez de recursos. Os que rareiam conseguem figurar no rol dos mais valiosos. O que os economistas não aprendem é a medida da subjetividade: as pessoas são diferentes no comportamento perante as coisas valiosas. São esses comportamentos que determinam, para cada pessoa, o valor de uma coisa.
Ele dizia que o arroz doce estava entre as coisas de maior riqueza. Ela perguntou se comia arroz doce muitas vezes. Ele não sabia quantas eram muitas vezes e pediu ajuda no esclarecimento do assunto quantitativo. Ela devolveu a incumbência: ele é que sabia quantas vezes podiam figurar como muitas. Não era interpelação despicienda: mal fosse quantificado o limiar das muitas vezes, assim se saberia se o arroz doce preenchia as condições da escassez para ser reconhecido como iguaria valiosa. Puseram-se de acordo: ele admitiu que vezes suficientes, na ingestão de arroz doce, seriam três, no máximo quatro, em cada calendário anual. Ela aceitou a formulação – parecia-lhe uma razoabilidade.
Ele começou a descrever a constelação de sentidos que o invadia de cada vez que metia à boca uma colherada de arroz doce. Era um prazer daqueles em que os olhos espontaneamente se fecham, como se o seu encerramento ajudasse a fruir os paladares que concorriam nas papilas gustativas. A textura tinha de obedecer a certos predicados: não podia ser leitosa, nem podia estar a preceito de serem cortadas talhadas inteiras. A cozedura não podia passar do período estabelecido nos tratados pantagruélicos; ovos muito passados sobrepor-se-iam aos demais sabores (a menos que se abusasse na dose de canela; só que, então, ficaria a predominar o sabor deste condimento sobre o resto e já nem teria propriedade falar-se de arroz doce, mas de uma mistela qualquer com aroma a canela). O açúcar tinha de estar na dose certa, para não emprestar um adocicado extremo (que ditaria o rápido enjoamento) nem para retirar carácter à iguaria (por carência de açúcar).
Ela perguntou se já não pusera a hipótese de aumentar a dose anual de ingestão de arroz doce, tantos eram os deleites de cada vez que um prato da iguaria, com colher a preceito, parava à sua frente. Ele disse que não. Que gostava de coisas assim, das que hasteiam prazeres que convocam os sentidos prolíficos, sem passarem da medida certa. E antes que ela voltasse a insistir com nova interrogação (“o que tens por ‘medida certa’?”), ele antecipou-se e pôs sentença na conversa: “a medida certa é a que tiveres por ajuizada. Varia de pessoa para pessoa. E de instante para instante”.
Sem demoras, virou o rosto na direção da mesa da cozinha, onde um prato de arroz doce ainda fumegava, acabado de sair da confeção: “agora vou-me ao arroz doce, se me dás licença.” E fechou-se para o mundo durante as colheradas que demorou a exaurir o prato de arroz doce.

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