Sonic Youth, “100%”, in https://www.youtube.com/watch?v=N3gN9Up6hmc
Triunfal! – era como se sentia ao saber que tinha aviado
o vulto. Ainda por cima, o vulto! É o que o outro homem que matara às portas da
floresta dizia de si mesmo ser porta-voz do vulto, o que diminuía a sua importância
e fazia do vulto a genuína personificação da sua consciência. Mas já não
interessava saber quem tinha o papel principal e o papel de figurante. Os dois
deixaram de aparecer no palco por onde o seu corpo dantes se arrastava e agora –
tinha de ser! – seria profeta único do devir.
Não conseguia refrear os ânimos excitados. Continuou a
errar pelas ruas da cidade para celebrar a derrota dos entes exteriores que saíam
de si, em forma de consciência, e queriam impor a rendição do que fora e a paga
em forma de punição. Fez-se noite e nem sentia o cansaço de quem só dormiu um
par de horas nos últimos dois dias. Que seria próprio de quem sufragou um
concentrado de emoções. A certa altura, teve a impressão que os acontecimentos
recentes tinham tomado mais tempo do que grande parte da sua vida já conservada
nos armários do tempo pretérito. O tempo não parecia uma medida linear.
Meteu-se pela noite dentro, intérprete do microcosmo
noctívago. Entrou em bares, em tascas, descansou as pernas em bancos de jardim,
foi à estação de comboios apenas porque apeteceu ver de onde vinham os comboios
e para onde estavam de partida. Passou por teatros, pela praça principal, pela
escola onde andara a estudar, trocou dois dedos de conversa com mendigos que se
preparavam para a noite ao relento na soleira de um escritório de advogados. Subiu
as escadas íngremes que dão acesso à mais alta torre de menagem, para apreciar
o bulício noturno da cidade – ou só para se sentir imperador, e único, do seu
ser, do devir de que se achava credor. Seria mais uma noite fora de casa. Mais algum
tempo em que os seus não davam pela sua ausência.
Uma sensação anómala magoava as veias. Misturava um
tremendo júbilo, a impressão de ser a pessoa mais alta do mundo, com uma angústia
que não conseguia explicar. Tendo-se livrado das consciências que o amordaçavam
(ou nem tanto, a crer pelas juras que fazia de nunca ter fermentado
arrependimento pelos delitos de que as consciências o incriminaram), não sabia
por que a boca estava contaminada por um gosto amargo. Parecia como daquelas
vezes que pressentira maus agoiros e depois vieram a ter lugar. (Por isso dizia,
sem dar importância ao dito, que tinha o sexto sentido feminino.) Agora que se achava
livre como nunca, sem ter de prestar contas às várias encarnações da consciência,
por que estava a contas com a angústia?
Enquanto era assaltado por este sentimento que não sabia
aclarar, começou a sentir que não tinha mão em si. Ao passar por uma livraria,
quis entrar para olhar as lombadas dos livros, por sentir um apetite irreprimível
pela leitura. Logo ele, que já nem se lembrava qual fora o último livro que
lera e não tinha em boa conta escritores e gente que se perdia de amores pela
literatura. Parecia uma criança defronte de um brinquedo desejado há muito
tempo: os olhos reluzentes enquanto passeavam pelas capas dos livros expostos
na montra, mentalmente recordando-se de outros livros da autoria dos escritores
que estavam expostos – como se fosse perito numa arte que desdenhava, como se
os tivesse lido, ou sequer conhecesse, nem o nome, aqueles autores. Não tinha mão
nisto! Por mais que houvesse uma parte substancial de si que quisesse virar as
costas à livraria, para devolver o eu que conhecia e por que não nutria desprazer,
a outra metade de si, aquela em que não tinha freio, ordenava que o corpo se
mantivesse inerte, apenas dando ordem de movimentação aos olhos que consumiam
avidamente as leituras de antanho de alguns autores que faziam da montra a sua passerelle para o público. (Sem que os
tivesse lido alguma vez.)
Nos dias seguintes, depois de noites de sono sereno,
estes episódios de esquizofrenia vieram várias vezes à tona. Uma vez, foi a
esmola, e generosa, a uma cigana que se arqueava, em pose de humilhante comiseração,
à saída da estação do metro. Outra vez, não teve de desviar o olhar de um
transsexual que se sentou na mesa da frente enquanto almoçava. E outra vez,
correu atrás de uns ganapos que estavam em preparos de quem ia cometer umas
maldades sobre uma ninhada de gatos imberbes e sem a guarda da mãe. De todas
estas vezes, a parte de si que era indomável comandou-o para atos de que o eu
limitado ao seu ser jamais seria intérprete.
Foi quando dúvidas assanhadas, que tantas vezes notara
como um carcinoma a corroer as veias, teimaram em continuar aportadas ao seu
ser. De repente, arrefeceu o fausto que via reproduzido em si: e se houvesse
mais consciências prontas a aparecer para renovarem o acerto de contas que as
consciências que matara exigiam num frémito? E se estes desvios da sua parte
indomável já fossem a colonização por uma consciência que agia pela calada, sem
pré-aviso para não exortar a sua rebeldia contra tal consciência?
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