3.5.16

Floresta (14)

Sonic Youth, “100%”, in https://www.youtube.com/watch?v=N3gN9Up6hmc
Triunfal! – era como se sentia ao saber que tinha aviado o vulto. Ainda por cima, o vulto! É o que o outro homem que matara às portas da floresta dizia de si mesmo ser porta-voz do vulto, o que diminuía a sua importância e fazia do vulto a genuína personificação da sua consciência. Mas já não interessava saber quem tinha o papel principal e o papel de figurante. Os dois deixaram de aparecer no palco por onde o seu corpo dantes se arrastava e agora – tinha de ser! – seria profeta único do devir.
Não conseguia refrear os ânimos excitados. Continuou a errar pelas ruas da cidade para celebrar a derrota dos entes exteriores que saíam de si, em forma de consciência, e queriam impor a rendição do que fora e a paga em forma de punição. Fez-se noite e nem sentia o cansaço de quem só dormiu um par de horas nos últimos dois dias. Que seria próprio de quem sufragou um concentrado de emoções. A certa altura, teve a impressão que os acontecimentos recentes tinham tomado mais tempo do que grande parte da sua vida já conservada nos armários do tempo pretérito. O tempo não parecia uma medida linear.
Meteu-se pela noite dentro, intérprete do microcosmo noctívago. Entrou em bares, em tascas, descansou as pernas em bancos de jardim, foi à estação de comboios apenas porque apeteceu ver de onde vinham os comboios e para onde estavam de partida. Passou por teatros, pela praça principal, pela escola onde andara a estudar, trocou dois dedos de conversa com mendigos que se preparavam para a noite ao relento na soleira de um escritório de advogados. Subiu as escadas íngremes que dão acesso à mais alta torre de menagem, para apreciar o bulício noturno da cidade – ou só para se sentir imperador, e único, do seu ser, do devir de que se achava credor. Seria mais uma noite fora de casa. Mais algum tempo em que os seus não davam pela sua ausência.
Uma sensação anómala magoava as veias. Misturava um tremendo júbilo, a impressão de ser a pessoa mais alta do mundo, com uma angústia que não conseguia explicar. Tendo-se livrado das consciências que o amordaçavam (ou nem tanto, a crer pelas juras que fazia de nunca ter fermentado arrependimento pelos delitos de que as consciências o incriminaram), não sabia por que a boca estava contaminada por um gosto amargo. Parecia como daquelas vezes que pressentira maus agoiros e depois vieram a ter lugar. (Por isso dizia, sem dar importância ao dito, que tinha o sexto sentido feminino.) Agora que se achava livre como nunca, sem ter de prestar contas às várias encarnações da consciência, por que estava a contas com a angústia?
Enquanto era assaltado por este sentimento que não sabia aclarar, começou a sentir que não tinha mão em si. Ao passar por uma livraria, quis entrar para olhar as lombadas dos livros, por sentir um apetite irreprimível pela leitura. Logo ele, que já nem se lembrava qual fora o último livro que lera e não tinha em boa conta escritores e gente que se perdia de amores pela literatura. Parecia uma criança defronte de um brinquedo desejado há muito tempo: os olhos reluzentes enquanto passeavam pelas capas dos livros expostos na montra, mentalmente recordando-se de outros livros da autoria dos escritores que estavam expostos – como se fosse perito numa arte que desdenhava, como se os tivesse lido, ou sequer conhecesse, nem o nome, aqueles autores. Não tinha mão nisto! Por mais que houvesse uma parte substancial de si que quisesse virar as costas à livraria, para devolver o eu que conhecia e por que não nutria desprazer, a outra metade de si, aquela em que não tinha freio, ordenava que o corpo se mantivesse inerte, apenas dando ordem de movimentação aos olhos que consumiam avidamente as leituras de antanho de alguns autores que faziam da montra a sua passerelle para o público. (Sem que os tivesse lido alguma vez.)
Nos dias seguintes, depois de noites de sono sereno, estes episódios de esquizofrenia vieram várias vezes à tona. Uma vez, foi a esmola, e generosa, a uma cigana que se arqueava, em pose de humilhante comiseração, à saída da estação do metro. Outra vez, não teve de desviar o olhar de um transsexual que se sentou na mesa da frente enquanto almoçava. E outra vez, correu atrás de uns ganapos que estavam em preparos de quem ia cometer umas maldades sobre uma ninhada de gatos imberbes e sem a guarda da mãe. De todas estas vezes, a parte de si que era indomável comandou-o para atos de que o eu limitado ao seu ser jamais seria intérprete.
Foi quando dúvidas assanhadas, que tantas vezes notara como um carcinoma a corroer as veias, teimaram em continuar aportadas ao seu ser. De repente, arrefeceu o fausto que via reproduzido em si: e se houvesse mais consciências prontas a aparecer para renovarem o acerto de contas que as consciências que matara exigiam num frémito? E se estes desvios da sua parte indomável já fossem a colonização por uma consciência que agia pela calada, sem pré-aviso para não exortar a sua rebeldia contra tal consciência?

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