5.5.16

Floresta (16)

Underwolrd, “If Rah”, in https://www.youtube.com/watch?v=ZbphaKMepqY
Um dia, a meio da tarde, enquanto fazia uma interrupção para saltar de uma tarefa para outra, veio ao pensamento que não fora, em todos estes anos, um pai como devia ter sido. Primeiro, em ato reflexo, sentiu um profundo incómodo: já era pai há dezanove anos e nunca tivera tais pensamentos. Depois, e outra vez pela mão de um eu que não conseguia domar, interiorizou sobre a má paternidade que estalara, como uma bomba ao retardador, nas mãos do seu pensamento.
(Sem dar conta, o homem que alardeava ser senhor da sua consciência, ao ponto de não reconhecer dissonâncias entre ele e a consciência, decaía para as margens onde uma qualquer não reconhecida consciência começava a fruir.)
Já não conseguiu pegar na segunda tarefa, que ficou adiada. Outra vez, as perguntas invadiam o espaço do pensamento, umas atrás das outras, irrefreáveis. Por que achava, depois de todo este tempo, que fora mau pai? Esta era a pergunta que encimava o pedestal onde desfilavam todas as outras interrogações que dela dimanavam. Sabia-se devedor de carinho junto dos filhos? Sabia alguma coisa das suas vidas, para além do óbvio sobre os estudos (e só porque os estudos eram um custo para o erário familiar)? Sabia o que liam, a música que ouviam, se os amigos que tinham eram de confiar, se andavam pelos caminhos da promiscuidade, se eram militantes das bebidas ou das drogas? Sabia que intenções tinham os filhos para o seu devir? Sabia-os felizes? A estas interrogações sucedia-se um pungente nada. Era como se os filhos fossem estranhos. Talvez fossem de atribuir as culpas pela fenda aberta entre ele e os filhos; assim como assim, são os mais velhos que têm o dever de cativar os mais novos – encargo mais premente quando se trata de medir o tamanho da cumplicidade entre um pai e os seus filhos.
Depois do jantar – de um jantar habitualmente silencioso, pois preferia deixar a atenção para o noticiário que passava na televisão –, e enquanto estava na varanda a fumar, resolveu que tinha de se inteirar sobre as pessoas dos seus filhos. Não podia continuar a ser um estranho e a considerar os filhos como estranhos. Começaria pela mais velha. Estava no quarto a ouvir música, encafuada nos auscultadores. Ela ficou atónita ao ver o pai entrar no quarto. Atónita e sem reação. Já não se lembrava quando o pai tinha entrado no seu quarto pela última vez. Ele perguntou, numa afabilidade inabitual:
- Posso entrar?
- Já estás cá dentro... – respondeu, com algum incómodo à mistura.
- Quero falar contigo.
- Qual é o assunto?
- Tu e eu.
- Como assim?
- Nós os dois...o relacionamento de pai e filha...
- Deixas-me sem jeito. Nunca tiveste esse cuidado antes. O que te deu agora?
- Tenho andado a pensar na vida. Tenho sido um pai ausente. Devia ser mais próximo de ti e do teu irmão.
- Se queres que te diga, já passou o tempo em que o teu afastamento magoava. Habituei-me a que fosse assim.
- Eu sei que não tenho sido um pai como deve ser.
- E eu não sei como é um “pai como deve ser”. Nunca o foste, não tenho um padrão que sirva para comparar.
- Ainda vou a tempo?
- Não sei.
- Podemos recuperar o tempo que não soube aproveitar? Achas que ainda vamos a tempo de ser pai e filha para além do que o sangue dita?
- Não sei, já disse. Apanhas-me de surpresa. Não tenho resposta, agora.
- Gostava de falar contigo. De saber coisas acerca de ti – mas só o que me quiseres contar, pois aceito que queiras reservar o que achares que não deva ser contado.
- Tu sabes o essencial sobre mim: estudo arquitetura e pratico andebol.
- Dizes bem, é o essencial. Acho que é pouco, que um pai deve estar mais presente na vida da sua filha, ser um ombro onde ela possa exorcizar as angústias, ou ser um peito onde vem depositar, orgulhosa, as proezas assinaladas.
- Não sei se estou preparada para tudo isso. Foste sempre tão ausente que me habituei em ver em ti um estranho. Agora, de repente, apareces diante de mim a querer fazer tudo ao contrário? Estás doente?
- Doente...porque perguntas tal coisa?!
- Sei lá bem...parece que este súbito arrependimento soa a urgência em compor as transgressões do passado porque alguém travou conhecimento com a morte prometida para daqui a pouco tempo.
- Bate na boca! Estou com uma saúde de ferro!
- Que reviravolta. De pai ausente a pai a querer desfolhar as páginas de uma cumplicidade que nunca soube o que era, nem de ti nem da mãe, que fique devidamente assinalado.
- Estou diante de ti numa abertura total de mim, num clamor sincero de quem admite que errou este tempo todo e quer reparar os estragos, se ainda houver tempo e vontade para a reparação.
- Pois eu não sei mais nada. Estou desorientada. Não esperes que dê uma resposta imediata. Não esperes que me deite nos teus braços, lavada em lágrimas, enquanto afagas o meu cabelo. Isso não tem reparação com um estalar dos dedos, nem com a tua, dizes, humilde sinceridade. Já sou crescida e penso pela minha cabeça. Gostava que mostrasses respeito por mim.
- Sim. Entende esta conversa como uma manifestação da intenção de mudar a forma como somos pai e filha. Nesta altura, não espero mais nada. Fica tudo nas tuas mãos. Ficarei à espera o tempo que for preciso.
Já noite, e enquanto deitava os olhos pela televisão a arranjar húmus para o sono que tardava, não era a obstinação da filha, a sua recusa em cair aos pés de um pai humilde no seu clamor para novos esteios que prendessem pai e filha, que tomavam conta do seu pensamento. Era não perceber de onde viera a pulsão para ter aquela conversa, para mostrar uma nudez que porventura atuou como um abalo telúrico para os alicerces da rapariga. E era, sobretudo, porque ele não se revia naquele homem cheio de lhaneza que apareceu diante da filha.

Sem comentários: