Underwolrd, “If Rah”, in https://www.youtube.com/watch?v=ZbphaKMepqY
Um dia, a meio da tarde, enquanto fazia uma interrupção
para saltar de uma tarefa para outra, veio ao pensamento que não fora, em todos
estes anos, um pai como devia ter sido. Primeiro, em ato reflexo, sentiu um
profundo incómodo: já era pai há dezanove anos e nunca tivera tais pensamentos.
Depois, e outra vez pela mão de um eu que não conseguia domar, interiorizou
sobre a má paternidade que estalara, como uma bomba ao retardador, nas mãos do
seu pensamento.
(Sem dar conta, o homem que alardeava ser senhor da sua
consciência, ao ponto de não reconhecer dissonâncias entre ele e a consciência,
decaía para as margens onde uma qualquer não reconhecida consciência começava a
fruir.)
Já não conseguiu pegar na segunda tarefa, que ficou
adiada. Outra vez, as perguntas invadiam o espaço do pensamento, umas atrás das
outras, irrefreáveis. Por que achava, depois de todo este tempo, que fora mau
pai? Esta era a pergunta que encimava o pedestal onde desfilavam todas as outras
interrogações que dela dimanavam. Sabia-se devedor de carinho junto dos filhos?
Sabia alguma coisa das suas vidas, para além do óbvio sobre os estudos (e só
porque os estudos eram um custo para o erário familiar)? Sabia o que liam, a música
que ouviam, se os amigos que tinham eram de confiar, se andavam pelos caminhos
da promiscuidade, se eram militantes das bebidas ou das drogas? Sabia que
intenções tinham os filhos para o seu devir? Sabia-os felizes? A estas
interrogações sucedia-se um pungente nada. Era como se os filhos fossem estranhos.
Talvez fossem de atribuir as culpas pela fenda aberta entre ele e os filhos;
assim como assim, são os mais velhos que têm o dever de cativar os mais novos –
encargo mais premente quando se trata de medir o tamanho da cumplicidade entre
um pai e os seus filhos.
Depois do jantar – de um jantar habitualmente
silencioso, pois preferia deixar a atenção para o noticiário que passava na
televisão –, e enquanto estava na varanda a fumar, resolveu que tinha de se
inteirar sobre as pessoas dos seus filhos. Não podia continuar a ser um
estranho e a considerar os filhos como estranhos. Começaria pela mais velha. Estava
no quarto a ouvir música, encafuada nos auscultadores. Ela ficou atónita ao ver
o pai entrar no quarto. Atónita e sem reação. Já não se lembrava quando o pai
tinha entrado no seu quarto pela última vez. Ele perguntou, numa afabilidade
inabitual:
- Posso entrar?
- Já estás cá dentro...
– respondeu, com algum
incómodo à mistura.
- Quero falar contigo.
- Qual é o assunto?
- Tu e eu.
- Como assim?
- Nós os dois...o
relacionamento de pai e filha...
- Deixas-me sem jeito. Nunca
tiveste esse cuidado antes. O que te deu agora?
- Tenho andado a pensar
na vida. Tenho sido um pai ausente. Devia ser mais próximo de ti e do teu irmão.
- Se queres que te
diga, já passou o tempo em que o teu afastamento magoava. Habituei-me a que
fosse assim.
- Eu sei que não tenho
sido um pai como deve ser.
- E eu não sei como é
um “pai como deve ser”. Nunca o foste, não tenho um padrão que sirva para
comparar.
- Ainda vou a tempo?
- Não sei.
- Podemos recuperar o
tempo que não soube aproveitar? Achas que ainda vamos a tempo de ser pai e
filha para além do que o sangue dita?
- Não sei, já disse. Apanhas-me
de surpresa. Não tenho resposta, agora.
- Gostava de falar
contigo. De saber coisas acerca de ti – mas só o que me quiseres contar, pois
aceito que queiras reservar o que achares que não deva ser contado.
- Tu sabes o essencial
sobre mim: estudo arquitetura e pratico andebol.
- Dizes bem, é o
essencial. Acho que é pouco, que um pai deve estar mais presente na vida da sua
filha, ser um ombro onde ela possa exorcizar as angústias, ou ser um peito onde
vem depositar, orgulhosa, as proezas assinaladas.
- Não sei se estou
preparada para tudo isso. Foste sempre tão ausente que me habituei em ver em ti
um estranho. Agora, de repente, apareces diante de mim a querer fazer tudo ao
contrário? Estás doente?
- Doente...porque
perguntas tal coisa?!
- Sei lá bem...parece
que este súbito arrependimento soa a urgência em compor as transgressões do
passado porque alguém travou conhecimento com a morte prometida para daqui a
pouco tempo.
- Bate na boca! Estou
com uma saúde de ferro!
- Que reviravolta. De
pai ausente a pai a querer desfolhar as páginas de uma cumplicidade que nunca
soube o que era, nem de ti nem da mãe, que fique devidamente assinalado.
- Estou diante de ti
numa abertura total de mim, num clamor sincero de quem admite que errou este
tempo todo e quer reparar os estragos, se ainda houver tempo e vontade para a
reparação.
- Pois eu não sei mais
nada. Estou desorientada. Não esperes que dê uma resposta imediata. Não esperes
que me deite nos teus braços, lavada em lágrimas, enquanto afagas o meu cabelo.
Isso não tem reparação com um estalar dos dedos, nem com a tua, dizes, humilde
sinceridade. Já sou crescida e penso pela minha cabeça. Gostava que mostrasses
respeito por mim.
- Sim. Entende esta
conversa como uma manifestação da intenção de mudar a forma como somos pai e
filha. Nesta altura, não espero mais nada. Fica tudo nas tuas mãos. Ficarei à
espera o tempo que for preciso.
Já noite, e enquanto deitava os olhos pela televisão a
arranjar húmus para o sono que tardava, não era a obstinação da filha, a sua
recusa em cair aos pés de um pai humilde no seu clamor para novos esteios que
prendessem pai e filha, que tomavam conta do seu pensamento. Era não perceber
de onde viera a pulsão para ter aquela conversa, para mostrar uma nudez que
porventura atuou como um abalo telúrico para os alicerces da rapariga. E era,
sobretudo, porque ele não se revia naquele homem cheio de lhaneza que apareceu
diante da filha.
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