26.5.16

A intermitência de um ainda

Orelha Negra, “A Sombra”, in https://www.youtube.com/watch?v=kXaZGjLKWbg&spfreload=5
Diz-se “ainda” para meter um archote entre dois tempos. Diz-se “ainda” como ênfase da descontinuidade do tempo. Diz-se “ainda” porque não colhe a perenidade das coisas que decorrem no processo dos consumos. Diz-se “ainda” como promessa das coisas futuras, num processo de intenções de as ter entre as mãos num dado tempo ainda por haver. Diz-se “ainda” em conjunção negativa ou em conjunção positiva: diz-se “ainda” quando o terreno conhecido parece esvair-se debaixo dos pés; diz-se “ainda” quando um propósito que depende do tempo vindouro ainda não foi inventado.
O “ainda” é um ontem que não está esquecido, ou um amanhã sem provimento enquanto o “ainda” não encontrar a sua vocação. O “ainda” é uma intermitência do tempo. A ponte entre dois tempos diferentes, cimentados pelo “ainda” que se intromete entre eles. Devolve as pessoas à noção da exiguidade das coisas, quer das que se acham resguardadas entre as mãos, quer das que pertencem ao emblemático coagir das intenções futuras. Diz-se “ainda” quando não se capitula perante o conhecimento que vem a propósito. Diz-se “ainda” para selar uma ambição que destrava os nós embuçados num tempo que se conhece, ou para um tempo que pertence – ainda – às trevas do desconhecimento.
Ao dizer “ainda”, o tempo fica suspenso. É como se um relógio original convocasse os deuses das deliberações e registasse em livros notariais as promessas alinhavadas pelo “ainda” que se disse, enquanto o relógio retém os seus ponteiros. Todos os “ainda” que rebentam na boca escolhem a ousadia do desassossego, desautorizam a inércia que prolonga o tempo numa sucessão infindável de repetições, dando cais de abrigo à monotonia. Dizer “ainda” é um combate contra a mesmice. Mas dizer “ainda” pode conter um paradoxo, se o “ainda” que se diz, em sintonia com a distração do enunciado, prometer uma posteridade que se enlaça com o pretérito de que se quer afastamento. Manda o razoável que se diga um “ainda” de cada vez, sem misturar as diferentes dimensões do tempo.
Dizer “ainda” é uma transigência com a ambição do ser. Interrompe o tempo achado, comprimindo-o contra um seu intervalo à procura de obter uma definição diferente do tempo, ou um tempo redefinido.

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