Wand, “There Is a Place”,
in https://www.youtube.com/watch?v=WQIgorNLUaY
Epílogo
Deu por si às portas da floresta. A floresta, outra vez.
Jurava que desta vez a floresta seria salvífica. Não havia lugar aos medos. Como
as coisas podiam ser a antítese do que foram dantes: da outra vez, a floresta
incendiara medos, uma apoplexia sufocante. Mas agora a floresta era o prometido
exílio com perfume de amparo contra a montaria da polícia. Acossado, teve de
abdicar de tudo. Já não tinham serventia os planos de transfiguração que vinham
de dentro, possivelmente daquilo que as pessoas chamam alma, os planos que não
conseguia domesticar e que pressentiam para o tempo mais tarde uma pessoa
melhor. Abdicara da família que, enfim, aprendera a apreciar. Dos amigos, de
quem estivera propositadamente distante e eram agora um manancial de prazer.
Caminhou pela floresta dentro. Desta vez, o tempo
soalheiro acompanhava-o. Não havia as sombras que foram constante apoquentação,
as sombras que por vezes se disfarçavam de personagens-vultos que adejavam
sobre ele só para o mortificar. O dia estava radioso. A floresta não parecia o
mesmo lugar medonho. Ouvia o chilrear dos pássaros como pano de fundo. De vez
em quando, via um corço, um javali furtivo, uma lebre escapulindo-se em
velocidade vertiginosa, um ou outro cavalo selvagem num pasto. Ouvia o
rumorejar da água em pequenos regatos que sulcavam vales suaves que desenhavam
a orografia da floresta. Folgou ao saber da existência de tanta fauna: não
seria de fome que morreria no voluntário exílio.
Andou horas e horas, errando pelas veredas da floresta. Não
tinha mapa nem queria estar na posse de um. Tinha de conhecer a floresta como as
palmas das suas mãos. E olhou para as palmas das mãos: por acaso fazia jus ao
adágio popular? Temos a certeza que conhecemos de cor as palmas das mãos? Não passava
de um lugar comum entronizado pela corrompida sabedoria popular. As pessoas não
deitam os olhos nas palmas das mãos tempo que chegue para desenharem um mapa
detalhado do que vêm. Foi a conclusão a que chegou, depois de observar as
palmas das mãos com alguma demora, enquanto se sentou recolhido sob a copa de
uma vetusta árvore centrípeta. Se fosse uma metáfora, dir-se-ia que nunca somos
conhecedores a fundo da pessoa que somos.
Era o terceiro dia de exílio na floresta. Não vira
vivalma. Era bom sinal. Tinha de se convencer da sua eremita condição. As
provações tinham uma recompensa: não ser capturado pela polícia e não ser
levado a julgamento num tribunal onde os juízes estariam sedentos de atuar como
zeladores da consciência social, no fundo o papel que desempenham ao aplicarem
as leis que – diz-se – escoram as fundações de uma sociedade exemplar. Não tinha
fome. Não tinha falta de banho, tantos os pequenos cursos de água onde se podia
banhar. E até a roupa não era problema: as mudas que trouxera eram bastantes
para ir revezando indumentária, enquanto a roupa suja secava presa a galhos de árvores.
O resto, improvisava. Não sabia das andanças do mundo, mas isso também não
tinha importância. O mundo, agora, estava reduzido à floresta. Propositadamente,
não trouxe telemóvel. Queria recolhimento monástico e estava a conseguir. Tinha
tanto tempo de sobra que andava em preparos de arrumação dos pensamentos que
subiam à boca de cena. A floresta propiciava um método heurístico. Era como se
a floresta, que dantes fora altar dos medos, surgisse como paraíso onde se
conciliava com o seu eu. Isso só era possível porque continuava convencido que
não tinha contas a prestar com ninguém. Nem com a justiça dos homens, nem com
qualquer arremedo da sua consciência, ou que por ela se quisesse fazer passar. Não
havia nenhum acerto de contas.
À quarta noite, acordou sobressaltado por um troar
impressionante, medonho. Sentiu o que parecia o ribombar de um trovão, mas não
podia ser: olhou o céu, que estava completo de estrelas. E não podia ser
trovoada porque discerniu ao longe os vestígios de fumo que subiam em forma de
coluna cónica. Parecia ter sido uma explosão. Já não conseguiu regressar ao
sono. A segurança ditava o imperativo da prospeção. Foi caminhando
vagarosamente na direção do lugar que sinalizava a explosão. A medo. Os galhos
das árvores pareciam encolhidos, eles também denotando medo depois de terem
acordado sobressaltados pelo temível troar. As folhas estavam inertes e não
havia sinal da profusa fauna que habita a floresta. De repente, surgiu um vulto
feminino que se escondia atrás de uma árvore. Cortou-lhe o caminho. Trazia uma
centelha a tiracolo, que apontou na sua direção, enquanto tirava as medidas
fitando-o de cima a baixo.
- Quem és tu? O que
queres de mim? –
perguntou o homem, assarapantado com a intempestiva interrupção da sua
caminhada.
- Que te interessa quem
sou? E por que achas que tenho intenções em relação a ti?
- Não sei...o
modo...intempestivo como me abordaste, faz supor que assim é.
- Tem calma. Não tenho
más intenções.
- Mas tens intenções,
afinal, e elas são dirigidas a mim.
- Possivelmente.
- Diz-me.
- Um corço contou-me
que a floresta tinha um novo habitante.
- Que sou eu, presumo.
- Sim, és tu.
- E daí?
- Daí que eu devia ter
sido informada dos teus planos. Apresento-me: sou a imperatriz da floresta. Todos
os habitantes da floresta são meus súbditos e têm de se inclinar diante da
minha vontade.
- Ora quer vossa excelência
ver que a floresta parou no tempo e que aqui se vive uma monarquia feudal... – disse, em tom jocoso.
- Cuidado com o tom. Não
é consentâneo com o respeito devido à imperatriz da floresta.
- E se não reconhecer os
domínios de vossa senhoria?
- Cometes um delito.
- Não me diga vossa
senhoria (prosseguiu
em tom sarcástico) que tem um séquito de
julgadores para os delitos de opinião cometidos nos vossos domínios.
- Não me dou ao
trabalho de fazer um curso breve sobre a ordem instituída na floresta. Se dúvidas
tens, o melhor será terminarmos esta conversa e sujeitares-te ao que puder vir sobre
ti amanhã ou depois.
- Por favor, e com o
devido respeito
(ensaiando uma cínica genuflexão), elucide-me
vossa senhoria sobre os terríveis males que sobre mim se possam abater.
- Aqui quem dá as
ordens é a suserana. Os súbditos sujeitam-se à sua vontade.
- Uma ordem anacrónica,
portanto.
- É o que temos. Julgo saber
que escolheste a floresta para fugir à justiça dos homens que te perseguem na
cidade.
- Como é possível saber
tal coisa? (Mudando
o tom de voz, agora denotando sincera preocupação com o oráculo que parecia
alojar-se sob a saia da imperatriz.)
- Eu sei de umas
coisas. Tenho fontes. Informadores. A floresta não é uma ordem fechada sobre si
mesma. Contacta com o exterior.
- Quer vossa excelência
convencer-me que não estou seguro no meu plano de fuga para a floresta?
- Tira as tuas conclusões.
Só deixo mais uma pista: sei tudo sobre a montaria da polícia, sobre o que
motivou a tua fuga. Tudo. Não me ponhas à prova. Limita-te a confiar nas minhas
capacidades. E digo-te: não testes os limites da minha paciência, pois se preciso
for, serei implacável.
- Postas as coisas
nesses termos, julgo não ter alternativa.
- Se queres ficar nos
meus domínios, tens de jogar de acordo com as minhas regras.
- Pergunto a vossa
senhoria se me é concedido exílio nos seus domínios.
- Depende.
- De quê?
- Do respeito das
regras, do código de conduta, da minha suprema vontade.
- O que devo fazer, ato
contínuo, para provar que mereço a confiança de vossa senhoria?
- Deves seguir o murmúrio
da água que corre neste ribeiro. Segue-o sempre. Quando chegares a um promontório,
verás que a água se despenha.
- E quando chegar ao despenhadeiro,
o que devo fazer?
- O que se impõe,
perante o circunstancialismo do teu mui problemático caso: dar um passo em
frente quando sentires que o precipício está quase debaixo dos teus pés.
- Sugeres o suicídio?
- Como sabes se o resultado
do passo em frente no precipício é o suicídio? Como sabes se o desfiladeiro é vertiginoso?
- Pois, como sei?
- Limitas-te a confiar
na minha palavra. E sabes que não tens opção. Ou melhor, tens: se não cumprires
a minha vontade, farei chegar informações à cidade sobre o teu paradeiro.
O homem seguiu o preceituado. Não demorou muito a chegar
ao desfiladeiro. Hesitou – e como estava habituado, mas não tinha alternativa –
a menos que a imperatriz fosse um logro na forma de outra tentativa de
personificação da sua consciência. Estava cansado. Cansado de viver sitiado em
dúvidas que se desmultiplicavam em interrogações para as quais não conseguia
arranjar resposta.
Fechou o pensamento enquanto segurou a respiração. E deu
o salto em frente.
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