Queens
of the Stone Age, “Go With the Flow”, in https://www.youtube.com/watch?v=DcHKOC64KnE
O homem velho toma sozinho o pequeno-almoço. Ao almoço
não tem ninguém que amesende com ele. A longa tarde é passada entre bancos de
jardim, a marginal sobranceira ao rio, um livro tirado da estante da livraria,
sempre hipotecado pela solidão. Volta a jantar sozinho. Nem sequer os
empregados de mesa dos restaurantes onde está acostumado a fazer as refeições
metem conversa com ele – ou será ele que, de rosto fechado, não motiva
simpatia. Depois de levar o jantar vagarosamente, enquanto deita um olho no
noticiário que passa na televisão e outro no jornal gasto que já com as
notícias velhas, empurra lentamente o corpo pelas ruas íngremes até casa. Sozinho.
Antes que o sono se faça anunciar, deita os olhos pelos
mesmos programas da televisão. Sabe que um punhado de livros jaz amontoado na
mesa da sala e que os olhos dão de caras com os livros antes de se projetarem
na televisão. Compra os livros que julga sedutores e depois não tem força para
deitar os olhos nas páginas do livro, que ganha estatuto de desatração. De que adianta embeber-se na
narrativa de um livro se não tem com quem discutir a trama?
Quando os olhos começam a pesar, deita-se na cama,
sozinho. Não se incomoda quando o sono, que se anunciara um pouco antes, se
incompatibiliza com a horizontalidade da cama; não tem de partilhar a insónia
com ninguém. Mas já aprendeu como é a solidão. Aprendeu de mote próprio,
adestrado pelas circunstâncias que um certo fado determinou. A família é
pequena e está longe. Passam-se temporadas inteiras sem estar com os familiares,
sem que sequer se contactem. Paradoxalmente, a solidão não lhe mete medo. Não
vale a pena sonhar com uma serventia diferente da vida, pois a vida é uma
estrada que rompeu por entre montes e vales, por entre estes montes e estes
vales. Não por outros quaisquer. Já foi tempo em que o espectro da solidão lhe
parecia um abutre insaciável a pairar insistentemente.
Aprendeu a envelhecer. Aprendeu que mais vale o estertor da
solidão do que insinuar um sofrimento a quem lhe queira bem. Talvez por isso, o
homem velho consagrou-se à solidão. Voluntariamente. Cozendo as bainhas todas
de forma a chegar à senescência sem outras dores se não a interior mortificação
de uma doença súbita não o ter levado antes, sem pré-aviso. Dantes, quando
ainda tinha ilusões, era pródigo numa espécie de prece interior em que suplicava
pelo desnascer. Como se pedisse para o tempo recuar e tudo fosse depois um
devir diferente. Ficava perplexo: ele, que não acreditava em vidas sucessivas
nem na hipótese da reincarnação, queria ir às cavernas do tempo para desnascer
e voltar a nascer na forma de outra pessoa. Julgava que esse era o segredo para
voltar a ser um homem novo.
Ao olhar para as mãos, sentado à mesa do café onde tomava
o pequeno-almoço, percebeu que os espelhos baços são um ardil terrífico. A
denegação das ilusões é, talvez, a dor mais difícil de suportar.
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